sábado, 27 de dezembro de 2008

O Pastoril, o Tempo sagrado e a contemporaneidade profana

Universidade Federal de Pernambuco
Curso de Especialização em História do Século XX
Disciplina - PANORAMA DA IGREJA CATÓLICA NO SÉCULO XX
Prof. Severino Vicente da Silva


O Pastoril, o Tempo sagrado e a contemporaneidade profana
Autor: Diógenes Arruda Ferreira




Resumo: Este trabalho busca investigar a constituição do Tempo sagrado para o homem religioso católico dentro de um contexto contemporâneo. Partindo da concepção de Mircea Eliade da experiência de duas temporalidades distintas vividas pelo homem religioso, observamos que através dos Bailes Pastoris, podemos perceber importantes aspectos dessas temporalidades.

Palavras-chave: Catolicismo; Pastoril; Tempo Sagrado.



Abstract: This study attempts to investigate the formation of the sacred Time for the religious catholic man in a contemporary context. Starting from the idea of Mircea Eliade of the existence of two distinct temporalities experienced by religious man, we observed that through the Pastoris, we can understand important aspects of these temporalities.

Keywords: Catholicism; Pastoril; Sacred Time.





O Pastoril, o Tempo sagrado e a contemporaneidade profana

1. Introdução

Vez por outra, nos surpreendemos com o retorno de alguns rituais, típicos dos cristãos, mais especificamente dos cristãos católicos, pois o catolicismo, mais que a racionalidade pós renascentista, expõe a sua fé de maneira mais simbólica, menos abstrata. (SILVA, Severino Vicente da. “Rituais de fé católica - novidade da tradição no Recife”. In www.biuvicente.blogspot.com , 03 de novembro de 2008)

Naquilo que pode estar se configurando como uma busca pelo re-encantamento da fé, ou talvez fosse melhor dizer um avivamento dos mistérios na religiosidade, o natal católico consegue nos apresenta uma riqueza de simbolismos da fé cristã que parecem entrelaçar o culto ao divino à vida social, mesmo dentro de instituições situadas em contextos mais laicos, durante o mês de dezembro.

Permeado de elementos sincréticos herdados de culturas relacionadas ao antigo Império Romano e/ou aquelas que se encontraram dentro do processo de expansão do catolicismo pela Europa, os festejos natalinos parecem reviver tradições de um mundo antigo, mais ligado ao encantamento e aos mistérios do que ao racionalismo dos iluministas ou ao cientificismo da modernidade, esta dita estar em crise ou até mesmo superada por uma pós-modernidade.

Dentro da simbologia natalina, chama-nos a atenção a convivência entre elementos do sagrado e do profano, e de quão importante são suas representações para a fé católica, seja numa escala global, como a celebração da Missa do Galo pelo Papa, transmitida ao vivo para vários países; ou numa escala mais regional, como as apresentações de pastoris no nordeste brasileiro.

No cenário configurado acima é que pretendemos compreender a importância dos elementos do tempo sagrado católico num contexto contemporâneo.

2. O tempo sagrado num panorama contemporâneo

Pressa, falta de tempo, urgência em cada ação, o tempo para o homem contemporâneo parece se encontrar cada vez mais escasso. A internet, elemento da vida deste mesmo homem contemporâneo que se posta como uma ferramenta fundamental na comunicação entre as pessoas, ilustra a urgência deste tempo; do agora, pois revela a medida de sua eficiência através da quantidade de informações por segundo que esta é capaz de suportar. Quanto mais informações por segundo, mais, mais eficiente será sua internet; quanto mais informações por segundo, mais eficiente será o homem. Eficiência e velocidade, configuram-se num binômio buscado com afinco tanto na tecnologia quanto no homem do presente, nos remetendo a construção da própria idéia de moderno, na busca, através da razão e da ciência, pelo desenvolvimento, ou, neste caso, talvez fosse mais ilustrativo o uso do termo progresso.
Contudo, esta construção do tempo desse homem máquina ou numa ótica contemporânea, de um homem virtual (principalmente em seus mecanismos de relações sociais) faz com que ele se depare com a questão: que repercussões e construções desse tempo do imediato trariam à vida desse homem do agora? A amplitude dessa pergunta impede a resposta veloz e eficiente digna da contemporaneidade, mas parece caber aqui a ilustração trazida pela obra cinematográfica (sendo também o próprio cinema uma forma de arte da modernidade) de Charles Chaplin Tempos Modernos, em que por meio das desventuras de um operário que em seu trabalho busca alcançar a velocidade e a eficiência da máquina, acaba evoluindo para um quadro de loucura compulsiva. Esse mal que aflige o operário da sátira de Chaplin e que ganha uma representação na contemporaneidade sob a forma de palavras como estresse, cada vez mais comum no vocabulário cotidiano, parece se situar dentro desta construção de uma crítica da modernidade e do lançamento de olhares para além dela ou de uma pós-modernidade, em que uma dialética entre razão e emoção são montados e fundamentam críticas e estudos sobre repercussões desse tempo do agora.

O estabelecimento de uma crise da modernidade revela uma falha na razão e no cientificismo em alcançar a variedade de desejos e sentimentos do homem. A razão e a ciência, aos moldes da modernidade, seriam eficientes, mas não suficientes na busca para saciar tais desejos e sentimentos. E é fundamental aqui percebermos o papel da religiosidade diante dessa crise da razão.

Seria negligência negar a importância da religiosidade dentro da modernidade. Contudo, com questionamento dos valores modernos, com a valorização dos sentimentos com parte influente das relações humanas, as religiões parecem provocar um re-encantamento de aspectos de um mundo laico que parecia buscar fundamentar sua existência numa forma laica, e nesse contexto o homem religioso parece encontrar nas práticas de sua fé um tempo que se encontra além dos limites da razão laicizante, o tempo do sagrado, rico em encantamento e mistérios.

Tal como o espaço, o Tempo também não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem continuo. Há, por outro lado, os intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua grande maioria, festas periódicas);por outro lado, há o Tempo profano, a duração temporal ordinária (...) mas por meio dos ritos o homem religioso pode passar, sem perigo, da duração temporal ordinária pra o Tempo sagrado. (ELIADE, Mircea. “O sagrado e o profano”. 2001:64)

No caso da igreja católica, cuja presença pode ser notada no Brasil desde o período colonial, traz consigo uma variedade destes momentos do Tempo sagrado. O homem religioso católico traz ao longo do seu calendário profano (no sentido de ligado estritamente aos aspectos da vida humana) bolsões de um tempo sagrado que se difere, segundo Eliade, do tempo comum, pois: O tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. É portanto, um tempo de encantamento, de sentimento de fé, de proximidade com o sagrado.


3. Ritos de fé e o tempo profano

Nesse contexto de vivência do tempo sagrado, percebemos a importância dos ritos periódicos do catolicismo para o homem católico contemporâneo.
De fato, o posicionamento da instituição Igreja Católica diante da modernidade não se estende apenas a esfera do sagrado. Nas relações sociais do tempo profano, o moderno e o antigo se revelaram fundamentais nas posturas políticas de alguns Papas e, por conseguinte, da Igreja Católica da época de cada um deles. Pio IX, Papa durante o período que se estende de 1846 a 1878, teve como postura refutar os elementos progressistas da sociedade industrial do século XIX. O historiador Severino Vicente da Silva afirma que:

Na verdade seu pontificado foi uma séria reprimenda a tudo que parecesse moderno e contrário às tradições e aos dogmas católicos. A postura de defensiva assumida pelo Papa era, ao mesmo tempo, uma agressão ao mundo que se formava. ( SILVA, Severino Vicente da. “Panorama da Igreja Católica no século XX”. 2008. mimeo. P 11.)

Postura diferenciada a de Pio IX, porém também preocupada com a vivência da modernidade pelos católicos, foi a do Papa Leão XIII. Em seu pontificado buscou uma adequação da instituição católica as novas questões sociais de sua época, dando ênfase na aproximação com a classe operária, em que a presença comunista, vista como doutrina herética pela propagação de posturas ateístas, se mostrava cada vez mais comum. Ou do papado de Paulo VI (durante 1962 até 1978), quando em 1966 é revogado em quase sua totalidade o Index Librorum Prohibitorum, lista de livros proibidos aos católicos, criada em 1559.

Contudo, o tempo do sagrado se encontra inserido numa outra esfera da religiosidade, em que o elemento mundano, ou profano, não mais dita a realidade vivida, ao menos enquanto o curso do tempo sagrado se faz presente.
No caso do catolicismo a expressão de seus rituais sagrados encontram-se intimamente ligados a representações simbólicas, mais que idéias abstratas e também inseridas dentro de uma cronologia histórica, posto que os elementos do calendário sagrado encontram-se situados em narrativas bíblicas que, por sua vez, trazem em seu conteúdo textual referencias históricas, como por exemplo, a administração da província romana da Judéia por Pôncio Pilatos. Desta forma, o calendário (neste caso o calendário promulgado pelo Papa Gregório XIII, ou gregoriano) acaba por computar e orientar os dias do tempo mundano e também os dos momentos de vivência do tempo sagrado para o homem religioso cristão.

A prática de ritos e festejos de comemoração de datas sagradas traz uma maior proximidade do homem religioso com a sua fé e com os que partilham dessa mesma fé. Na vivência do temo profano os ensinamentos do caminho correto para uma vivência próxima do elemento divino é gradativamente desgastado e esquecido ou distorcido. O rito e o festejo trazem de volta o tempo em que determinado valor ou símbolo se fez presente e reaviva aquilo que o tempo profano desgastou.

"Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico".(ELIADE, Mircea. “O sagrado e o profano”. 2001. p.79)

No caso brasileiro o historiador Severino Vicente da Silva afirma que: "A formação do Brasil foi marcada pela experiência católica, que sempre foi uma experiência que se manifesta festivamente, sempre em alegria."(SILVA,Severino vicente da. “Feriados cívicos e feriados religiosos”. In www.biuvicente.blogspot.com , in 29 de outubro de 2008.)

O tempo sagrado para o homem religioso católico no Brasil, pais de proporções continentais, assume uma variedade de formas e de festividades que mesclam a experiência do sagrado e do profano, e de elementos de uma religião de proporções globais às práticas e costumes das localidades onde se incorporam; caso dos pastoris no nordeste brasileiro.



4. O Baile Pastoril e o tempo sagrado

O pastoril remete sua origem a uma idéia do monge germânico Tuotilo, da Abadia de São Galo, que durante o século X desenvolveu uma celebração de natal baseado na representação do episódio bíblico da natividade.
A idéia de uma representação do nascimento de Jesus ganhou popularidade na Europa cristã, tendo sua representação na península Ibérica marcada pela forma de Vilhancicos. Vilhancicos eram cantigas interpretadas por grupos caracterizados como os pastores nas comemorações natalinas. A prática dessa celebração natalina ganha em Portugal outros elementos, como adesão do presépio, de criação atribuída a São Francisco de Assis, como o cenário ao fundo da representação em que se desenrola todo o Auto Pastoril, e os muitos personagens que acabam variando de acordo com a localidade, mas mantendo alguns elementos fixos. Dentre esses temos as pastoras, divididas em dois grupos (cordões), um trajado de azul e outro de vermelho (encarnado), e a Diana, fazendo um papel intermediário no jogo das cantigas que se desenrolam entre os dois cordões.
Francisco Augusto Pereira da Costa atribui as primeiras representações dos Autos Pastoris no Brasil ao Convento dos Franciscanos na cidade de Olinda, Pernambuco, durante o século XVI.



Ganhando notável popularidade no século XIX, o Pastoril passou a assumir duas formas bastante distinta em suas representações. Uma delas é o chamado “Pastoril profano”, caracterizado pelo foco em dois dos variados elementos do auto pastoril. As pastoras e o velho.



Nesta forma desse brinquedo popular, as pastoras assumem um ar de sensualidade entoando o coro das músicas cantadas pelo velho, músicas cheias de duplos sentidos e o caráter jocoso e libertino das apresentações. Essa forma de pastoril era condenada pela Igreja Católica, posto que distancia a simbologia dos Autos Pastoris como forma de celebração do nascimento de Jesus, gerando por vezes a interdição de apresentações por autoridades do Estado, a pedido da Igreja.
A outra forma, o Baile Pastoril, ou simplesmente Pastoril, encontra-se, por sua vez, vinculado a re-vivência do tempo sagrado, neste caso, o nascimento do messias cristão, através de representações e de cantigas como:

Todo o céu e terra
Vos cantam em louvor
Ó Menino Deus
Nosso redentor

Desses céus descei
Descei Criador
De remir o mundo
É tempo, Senhor


Estes elementos serviram para revitalizar e celebrar um tempo sagrado, trazendo encantamento a um mundo profano por meio de símbolos que por si remontam uma forma anterior a contemporaneidade de se cultuar o sagrado.



Podemos dizer, portanto, que o Pastoril é uma celebração que carrega consigo elementos não apenas de uma , mas de três temporalidades: o tempo sagrado, pois celebra um importante acontecimento de uma religião; o tempo profano, pois suas festividades se deparam com elementos do cotidiano em que se insere; e um tempo histórico, em que podemos perceber heranças de uma forma de festejo oriundo de um mundo medieval fazendo-se presente em um mundo contemporâneo.


5. Apontamentos finais

A vivência desse tempo sagrado através de ritos periódicos, festas e datas comemorativas, permitem ao homem religioso um experiência mais intensa de sua fé e de uma temporalidade mais próxima do elemento divino por ele cultuado.
A escolha do Pastoril para buscar a percepção de tal temporalidade se constitui em apenas uma escolha de todo um universo de festejos e ritos que formam as práticas católicas no Brasil. Nestas, acredito, também se revelariam contribuições de elementos da temporalidade sagrada vivida por seus praticantes, auxiliando, assim, a construção de maiores conhecimentos sobre esta religião que encontra-se intimamente ligada a formação histórico-cultural brasileira, o catolicismo.



Referências bibliográficas:

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FRANÇA, Eurico Nogueira. O ciclo folclórico do Natal. In. Jangada Brasil: Especial Natal. Ano VI – Edição 61. 2003. Disponível na Internet via: http://www.jangadabrasil.com.br/revista/dezembro61/ (acessado em 21 de novembro de 2008).

SILVA, Severino Vicente da. Panorama da Igreja Católica no século XX. UFPE. Recife-PE. 2008.

SILVA, Severino Vicente da. Rituais de fé católica: novidade da tradição no Recife. Disponível na Internet via: http://biuvicente.blogspot.com/2008/11/rituais-de-f-catlica-novidade-da-tradio.html. (acessado em 21 de novembro de 2008).

SILVA, Severino Vicente da. Feriados cívicos e feriados religiosos. Disponível na Internet via: http://biuvicente.blogspot.com/2008/10/feriados-cvicos-e-feriados-religiosos.html. (acessado em 21 de novembro de 2008).

VALENTE, Waldemar. Pastoril. Disponível na Internet via: http://www.fundaj.gov.br/docs/text/pastoril.html (acessado em 2 de dezembro de 2008).

Enciclopédia Católica Popular. Natal. Disponível na Internet via: http://www.agencia.ecclesia.pt. (acessado em 20 de novembro de 2008).

Prefeitura da cidade do Recife. Pastoril. Disponível na Internet via: http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes/ (acessado em 2 de dezembro de 2008).