segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Cuidado do Patrimônio Público ou do patrimônio católico

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DO SÉCULO XX


RENATA REYNALDO ALVES MAIA



ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE
Análise de editoriais e reportagens do Jornal do Commercio sobre o investimento do Estado na conservação de imóveis da Igreja Católica com vistas a preservar o patrimônio histórico e cultural brasileiro




Trabalho para conclusão da disciplina:
Panorama da Igreja Católica no Século XX
Professor: Severino Vicente da Silva


Recife, dezembro de 2008







Podemos construir obras excelentes enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.

Sérgio Buarque de Holanda,
em Raízes do Brasil









INTRODUÇÃO

Veículos de grande penetração na chamada classe formadora de opinião, os jornais impressos são ao mesmo tempo refletores, geradores e propagadores de idéias e valores. Uma análise criteriosa e pormenorizada de uma série de informações acerca de um só tema publicadas em um desses meios de comunicação pode revelar ou encobrir posturas de uma fatia da sociedade.

A partir da observação dos editoriais e reportagens coletadas no período de um ano (de 10 de novembro de 2007 a 10 de novembro de 2008) no Jornal do Commercio, veículo de perfil conservador, de grande inserção em Pernambuco e de maior circulação no Norte e Nordeste do país, por meio de uma busca dirigida aos temas “Igreja Católica” e “Preservação do Patrimônio”, buscamos obter o retrato da posição do jornal e de seu público com relação aos investimentos que o Poder Público faz, a título da preservação do patrimônio histórico e cultural nacional, nas edificações, leia-se, igrejas conventos, basílicas, mosteiros, capelas, entres outros bens da Igreja Católica.








GÊNESIS DA SIMBIÓSE

Para dar efetividade à sua política de preservação do Patrimônio Histórico e Cultural, o Estado brasileiro, cuja gênesis de sua formação está impregnada predominantemente por influências doutrinárias, sociais e culturais da Religião Católica, se vê ainda hoje, mesmo que desde a Constituição republicana de 1891 tenha suprimido o artigo que o declara, “em nome da santíssima trindade”, um país de religião “Catholica Apostolica Romana”, impelido a investir grandes montantes de recursos em obras de restauração, reforma e manutenção de edificações e objetos pertencentes à Igreja Católica.

Essa relação simbiótica entre os bens católicos e o Poder Público brasileiro, que tem inúmeros exemplos históricos, entre eles o caso da matriz de Nossa Senhora da Paz (no bairro de Afogados, em Recife) a qual “foi reconstruída em 1857 com o auxílio dos cofres públicos” , perdura até os dias de hoje, gozando da mesma condescendência da sociedade e da imprensa. Para sustentar essa prática inercial há razões históricas.

Quando ainda o país era um embrião promissor de uma próspera colônia, como ilustra Gilberto Freyre em seu primordial Casa Grande & Senzala, “o Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza da raça. Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades coloniais que fossem de fé ou religião Católica”. Para os colonizadores, o perigo estava no indivíduo herege. “Soubesse rezar o padre-nosso e a ave-maria, dizer Creio-em-Deus-Padre, fazer o pelo-sinal-da-santa-cruz e o estranho era bem vindo ao Brasil colonial”.

E prossegue o sociólogo pernambucano, ajuizando que a proximidade com o adventício católico também surtia o efeito de fortalecer a solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto com a religião católica e, assim, livrar a nação de inimigos políticos. Como que vaticinando, à época do lançamento do CG&S, o futuro muito remoto dos tempos atuais, Freyre deduz “ser tão difícil, na verdade, separar o brasileiro do católico. O catolicismo foi mesmo o cimento da nossa unidade”.
Assim como uma amálgama da nossa identidade, essa estreita relação vai se revelar em outros momentos emblemáticos da história brasileira. Segundo registros quando da chegada da família real para o Brasil, após descer a rampa do cais, em frente à Praça 15 de novembro, o primeiro ato em terras brasileiras ao qual compareceu o imperador e seus descendentes foi de cunho religioso, católico. A família real foi aspergida com água benta, em meio à queima de incensos e rezas.
“(...)D. João beijou a cruz e recebeu as benções do bispo. Depois colocou-se debaixo do pálio de seda vermelha e frisos dourados, que o protegia do sol. (...) À frente do cortejo iam as autoridades do Rio de Janeiro, os oficiais militares, os juízes e os padres, monges e seminaristas dos numerosos conventos. (...)”

Ainda com base na mesma publicação histórico-literária do jornalista Laurentino Gomes, que credita a informação ao historiador Luiz Felipe Alencastro para ilustrar o “ataque ao cofre” da colônia, a família real mantinha no Brasil, além de 276 fidalgos e dignatários régios que recebiam verbas anuais de custeio e representação, ao custo das moedas de ouro e prata retiradas do tesouro real do Rio de Janeiro, setecentos padres, um deles recebendo um salário fixo anual de 250 mil réis – equivalente hoje a 14 mil reais , – apenas para confessar a rainha. Embora não seja uma grande quantia, denota certo mercantilismo na relação.

Outros hábitos, dentre inúmeros que poderíamos citar, indicam a consciência de igreja que tinha a sociedade no Brasil. Ao contextualizar o papel da Igreja Católica na colônia entre 1808 e 1840, período que compreendeu movimentos de descolonização e insurreições, além da própria independência do Brasil, João Fagundes Hauck revela que era normal a vigilância policial com que o Governo controlava a prática religiosa. “A ereção de um cruzeiro em lugar público, de uma capela, não dispensava a licença que tinha que fazer longa caminhada burocrática”, destaca, no livro História da Igreja no Brasil.

CONDESCENDÊNCIA

A prática de o Estado destinar recursos para Igreja Católica, agora com o argumento de preservação do seu patrimônio, embora fundamentada também em sucessivas cartas magnas do país, quando estas atribuem ao Poder Público, cada uma com termos próprios, a função de proteger e oferecer cuidados especiais aos monumentos históricos, artísticos e naturais da Nação, se concretiza repetidamente com atenção muitíssimo especial ao patrimônio da Igreja Católica, sobretudo no que diz respeito aos bens edificados, como igrejas, capelas, conventos, matrizes, basílicas, seminários.

A análise nas publicações oficiais dos órgãos de execução ou de fomento à preservação desses bens e nos registros da imprensa revela que esta relação de primazia é bem absorvida tanto pela burocracia estatal quanto pela sociedade.
Há indicativos da neutralidade com que a sociedade encara esse “privilégio” dos bens culturais católicos, algumas vezes em detrimentos de equipamentos históricos, sejam laicos ou ligados a outras religiões e às manifestações mais espontâneas como as oriundas dos quilombolas e indígenas, estas também partícipes da formação da cultura brasileira.

Um desses sintomas é a condescendência e repetição com que, no exemplo escolhido para esta observação, o Jornal do Commercio (veículo pernambucano, de maior circulação do Norte e Nordeste do país), não apenas noticia como conclama e cobra, a partir do espaço de opinião institucional do próprio jornal (o editorial), entidades públicas e privadas a arcar com os custos da preservação desta ou daquela igreja no Recife.

Em um período de um ano, de 10 de novembro de 2007 a 10 de novembro de 2008, dos 20 editoriais que o JC destinou a abordar os temas da Preservação do Patrimônio histórico e cultural ou de Igrejas, seis deles foram explícitos no tom de denúncia de “abandono”, na cobrança de providências urgentes para evitar o desmoronamento de templos católicos, ou no enaltecimento das iniciativas com o propósito de salvaguardar igrejas, basílicas, azulejos de capelas, telhados de matrizes. Em alguns dos artigos, o editorialista, cuja função em uma redação de jornal é expressar a opinião do dono da empresa ou grupo econômico que banca o veículo, afirma que “é triste, por exemplo, saber que a paróquia (da Matriz da São José, com seus 144 anos) não possui recursos e pede ajudar para consertar as rachaduras do estuque e nas esquadrias empenadas” .

Em outro editorial, intitulado “Um exemplo da Igreja de Roma”, e publicado em 1º de agosto de 2008, o Jornal do Commercio enaltece uma ação de caridade que a priori afirma ser mantida pela Arquidiocese de Olinda e Recife, o Movimento Pró-Criança, mas cuja manutenção “se dá através de doações da sociedade, provenientes de pessoas físicas e jurídicas engajadas na responsabilidade social”. Entenda-se que parte é de empresas que contam com o incentivo fiscal (público) para ajudar a ação social da Igreja Católica.

Ao expressar sua opinião no editorial “O Convento e seus azulejos”, do dia 30 de junho de 2008, o jornal trata como uma remissão de dívida histórica dos pernambucanos o fato de o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), instituição financeira que, como diz seu enunciado, tem como missão promover o desenvolvimento econômico e social do país, ter investido por meio de convênio com a Fundação de Apoio ao Desenvolvido da UFPE (Fade), a quantia de R$ 2 milhões na restauração dos azulejos do Convento de Santo Antônio (de 1616), na Rua do Imperador, em Recife. E explica o artigo:
“Como nossa igreja do Recife é dedicada ao glorioso Santo – diz Frei Bonifácio Mueller, em seu livro o Convento de Santo Antônio, editado em 1956 – é de se esperar que seus azulejos façam lembrar a vida ou os milagres do santo, tanto mais que este amigo de Deus é milagroso por excelência”

O veículo também conclama, em seu editorial de 18 de abril de 2008, intitulado “A salvação da Basílica”, àquelas “mãos dos que têm meios e podem ser estimulados pela fé ou pelo prazer do mecenato”, a contribuir com recursos para ajudar “esse majestoso” templo da Igreja de Nossa Senhora da Penha. E “aquelas mãos”, como de costume, vêm do Poder Público, como atesta o mesmo artigo, onde consta que o a Fundação de Cultura do Estado de Pernambuco (Fundarpe) liberou R$ 850 mil para a reforma emergencial, cuja obra de restauração completa está orçada em R$ 4,2 milhões.

A IMPOSIÇÃO DOS FATOS

No mesmo período de tempo delimitado para análise desses editoriais (nov./07 a nov./08), observamos o comportamento das reportagens publicadas no Caderno de Cidades do mesmo Jornal do Commercio. Aqui é importante que se esclareça que, embora o espaço destinado a reportagens paute sua seleção de notícias pela imposição dos fatos do cotidiano, cabe ao editor e em última instância aos seus superiores na estrutura da redação, com base em critérios subjetivos, eleger o que de fato vai ser editado para a publicação.

Nesta análise dos textos publicados a partir da apuração de fatos externos à redação, identificamos que 13 deles trazem no título a expressão “igreja pede ajuda”, “busca apoio”, “campanha para financiar restauração” ou tratam da reabertura de templos católicos após as obras restauração, sempre com o apoio de recursos do Poder Público. A considerar esta lente de observação, a matéria mais notável delas, publicada em 4 de agosto de 2008, tem como argumento a Igreja de São José do Ribamar (Século XVIII), no centro do Recife, cujas instalações apresentam desgastes no piso, paredes e trechos de madeira infestados de cupins.

Instado a se pronunciar sobre a situação de abandono da igreja, o representante do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional (Iphan), cujo nome não é informado na reportagem, que atribui à entidade o poder de expressar informação, informa que em 1997 (portanto, há 11 anos) havia realizado obra de restauração do prédio. E completa: “a precariedade do imóvel se deve à falta de conservação, pois a igreja passou alguns anos fechada e isso contribui com a deterioração do piso, parede, teto e adorno, nos último anos”.

No caso da Matriz de São José, que foi tema da reportagem “Matriz de São José pede ajuda”, em 19 de outubro de 2008, outra curiosidade. O templo, erguido em 1844, no centro do Recife, com a nave central interditada devido às infiltrações e risco de desabamento do telhado está realizando suas missas no corredor. Ante a situação, o pároco que conduz a igreja há 37 anos, José Augusto Esteves, afirma categoricamente: “não temos a menos condição de executar o trabalho. A paróquia não possui recursos”. E completa: “a responsabilidade pela manutenção da igreja é da comunidade, a arquidiocese não dispõe de verbas para isso”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora seja de suscitar maiores e mais profundas análises o fato de um jornal atual e de grande influência reproduzir um pensamento oriundo nas arcaicas raízes da formação do Estado Brasileiro, a mera observância quantitativa e qualitativa dos conteúdos pinçados para esta observação revela uma absoluta falta de isenção ou de elaboração de juízo de valor contraditório sobre tema tão presente na nossa sociedade, haja vista a reincidência dos registros sobre Igreja Católica e Preservação do Patrimônio nas páginas do matutino eleito para objeto deste trabalho.
Ressalve-se que o conceito de juízo de valor contraditório aqui introduzido não seria, necessariamente, uma postura de condenação às práticas do Estado de investir na preservação do patrimônio da Igreja Católica, como fruto dessa incessante confusão entre o privado e o público na relação Estado x Igreja Católica. O que aqui observamos, sentimos falta, a rigor, é a não-abordagem isenta e crítica quanto a esta questão. Enfim, em nenhum dos registros que seguem em anexo encontra-se uma opinião dissonante da que se reproduz desde os idos do povoamento do Brasil.






ANEXOS


1. EDITORIAIS
Este material foi colhido dentre todos os editoriais publicados pelo Jornal do Commercio no período de 10 de novembro de 2007 a 10 de novembro de 2008, tendo como temas os verbetes “Igreja Católica” ou “Preservação do Patrimônio”.
Dos 20 selecionados, seis se enquadravam nos critérios pré-estabelecidos por este trabalho, que pretendia analisar apenas a relação entre a Igreja Católica e a política pública de preservação do patrimônio histórico e cultural nacional.

2. MATÉRIAS
A mesma abordagem foi dada na seleção das matérias a seguir anexadas. Todas as que atenderam à busca pelos verbetes “Igreja Católica” ou “Preservação do Patrimônio”, isto é 13 reportagens foram alvo da análise.










BIBLIOGRAFIA
• BOJADSEN, Angel (coord. editorial) – Cartas de uma Imperatriz. São Paulo. Editora Estação Liberdade, 2006
• FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. – 36ª ed. – Rio de Janeiro, Editora Record, 1999.
• GALVÃO, Sebastião de Vasconcelos. Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco. – 2ª ed. – Recife, CEPE, 2006.
• GOMES, Laurentino. 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta conseguiram enganar Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2007;
• HAUCK, João Fagundes; FRAGOSO, Hugo; BEOZZO, José Oscar; GRIJP, Klaus van der; BROD, Benno. História da Igreja no Brasil – Ensaio de interpretação a partir do provo – Segunda Época – Séc. XIX. Petrópolis – RJ. Editora Vozes, 2008
• HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. – 16ª ed. – Rio de Janeiro, J. Olympio, 1983.

CONSULTAS
• Constituições Federais do Brasil (1824 a 1988)
• Versão eletrônica das edições do Jornal do Commercio (Nov./07 a Nov./08)
www.jc.com.br, a partir das rubricas “Igreja”, “Preservação” e “Católica”
• Entrevista ao superintendente do Iphan/Regional NE, Frederico Almeida
• Entrevista à advogada Auxiliadora Beltrão – Programa Monumenta–BID

Nenhum comentário: