quinta-feira, 30 de outubro de 2008

TEXTOS IMPRESSOS E PRÁTICAS DE LEITURA NA EUROPA MODERNA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTORIA





TEXTOS IMPRESSOS E PRÁTICAS DE LEITURA
NA EUROPA MODERNA




Israel Ozanam
Laércio Dantas
Raimundo Fábio
Tássia Brandão








RECIFE
2008






Trabalho apresentado na disciplina História moderna II, ministrada pelo professor Severino Vicente da Silva, como parte dos exercícios propostos para obtenção da média semestral.







Sumário

1. Introdução..................4
2. O acesso a escrita e a leitura na idade moderna.........5
3. Práticas literárias e de leituras.......................6
3.1. “Progresso” Medieval..............................6
3.2. Leituras e literatura na era Clássica.............7
3.3. Literatura erótica................................9
3.4. Nova função da Literatura Romanesca...............9
4. Os impressos e as modalidades de leituras a partir do Prólogo da Celestina, de 1507......................................................10
5. A literatura de cordel..................................11
6. Práticas e representações das leituras camponesas em França no século XVIII......................................................13
7. O povo e a Palavra Impressa..............................15
8. O Universo da literatura clandestina no século XVIII.....19
8.1. Mercado literário ilícito..............................21
8.2. Ciclos do mercado literário ilícito....................21
9. conclusão........................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................25





















1. INTRODUÇÃO

Neste trabalho temos por interesse traçar uma visão das práticas de leitura e suas bases materiais na França moderna, entendendo que algumas dessas práticas podem ser encontradas fora da França, mas nosso estudo é, sobretudo, baseado nos franceses. Não podia ser diferente devido as fontes usadas nesta pesquisa que, em sua maioria, são constituídas por autores da nova história cultural, e que os principais autores utilizados, Roger Chartier, Robert Darnton e Natalie Zemon Davis, tem um gosto especial pela França moderna.

Quem se interessar em ler esse trabalho, constatará que traçamos um perfil das várias práticas de leitura no decorrer da era moderna, e também das condições materiais, ou intelectuais, que fazem parte dessas práticas. Dessa forma, não esquecemos da “margem”, ou seja, dos protagonistas anônimos da história, parafraseando Ronaldo Vainfas, os camponeses, suas práticas de leitura, assim como as modificações desta, se fazem presente com a intervenção dos estudos de Chartier e Natalie Davis, principalmente desta última. Por fim, a literatura clandestina na França pré-revolução é a última parte de nossa empreitada, uma época onde, através de artimanhas e expedientes diversos, tanto editores quanto livreiros procuram uma maneira de obter lucros num capitalismo ainda incipiente, mas suficientemente forte para trazer ao mercado literário a “ideologia” do lucro.
Esperamos de alguma forma contribuir para aumentar o conhecimento pretendido sobre a Europa Moderna e lhes dar uma leitura agradável sobre os temas propostos. Desejamos uma boa leitura a todos.






2. O ACESSO A ESCRITA E A LEITURA NA IDADE MODERNA.

De uma maneira geral, embora variável de região para região, segundo Chartier, a Europa da Era Moderna experimenta uma fase de maior alfabetização, embora afirme que não se possa fazer uma correlação imediata entre o crescimento do número de pessoas que sabem assinar seu nome a partir do século XVI, que são as fontes utilizadas na sua pesquisa, e o número daqueles que realmente sabem ler. Nem que esse progresso tenha sido linear e contínuo, contudo afirma que isso significou uma maior difusão e maior acesso a produção da escrita, nas sociedades ocidentais, entre os séculos XVI e XVII.
O acesso à escrita, assim, se mostra crescente, mas também de forma desigual. A primeira desigualdade é entre homens e mulheres. Em todas as regiões analisadas pelo autor, se afirma que há uma predominância, um maior percentual entre 25% e 30%, dos homens em relação às mulheres. Essa análise, ressalta Chartier, não deve ser levada a termos exatos, para uma comparação em relação ao hábito da leitura. Pois em geral o ensino nas Escolas de Mulheres, instituições antigas incluíam a aprendizagem da leitura, mas não necessariamente a da escrita.
A segunda desigualdade apresenta-se entre os ofícios e as condições sociais. Os clérigos, os gentis-homens e os grandes comerciantes, em geral têm um maior conhecimento da escrita, se comparados aos artífices ( ourives, celeiros, fabricantes de tecidos), ou lavradores. A relação entre comerciantes e aldeões, estão numa relação onde apenas 30% ou 40% sabem assinar o próprio nome. Nas cidades a hierarquia das profissões também representa motivos de variação, do acesso a escrita; mas segundo Chartier, nas áreas urbanas o progresso apresenta um avanço maior que nas áreas rurais.
A dispersão espacial da escrita concentra-se, principalmente, na parte Norte/Noroeste da Europa. Segundo as próprias modificações históricas de cada Estado. Aqueles onde foi empreendida a Reforma Religiosa, com a instituição de uma Igreja subordinada ao Estado, como na Inglaterra; verificou-se uma maior difusão tanto da leitura como da escrita, uma verdadeira campanha de alfabetização. Segundo Chartier “para que todos os fiéis pudessem aprender a ler e ver com seus próprios olhos o que Deus ordena e comanda através de sua Palavra sagrada”.
As religiões desempenham um papel que vão além de compreensões diferentes de mundo, também são reguladoras de acesso ao livro. Segundo Chartier, há uma predominância de uma maior propriedade de livros entre protestantes do que entre católicos. Nas suas bibliotecas quase sempre, embora em pequena quantidade, havia livros profanos, assim entendidos o que não fosse a Bíblia, alguns livros de cantos religiosos e outros poucos. Pois havia uma idéia de ler, no medievo, um tanto restrita, “ler significa retomar sempre os mesmo livros, poucos numerosos além da Bíblia e transmitidos de geração a geração[...]. Ler numerosos livros só afasta a meditação. Ler muito constitui uma opressão da mente” (p. 134). Idéia que será modificada na Idade Moderna.
Contudo, Chartier ressalta que não se pode generalizar, nem concluir que a Reforma Religiosa foi responsável, em todo lugar, para difundir a obrigação do fiel protestante de praticar uma leitura generalizada. Ao contrário disso, na Alemanha, por exemplo, Lutero em 1520 já pregava uma leitura das escrituras sagradas disciplinada, através da prática do catecismo e da prédica; ministradas pelos pastores.
Assim, a difusão da leitura e o desenvolvimento da alfabetização, que se inicia em uma Europa ainda medieval foi, até os fins do século XVI, privilégio de poucos, como os clérigos ou mesmo um período de obscurantismo, e de fraca alfabetização. Mas a partir do século XVII, depois de um longo tempo de resistência imposta pelo cristianismo em relação à difusão da leitura e da escrita como uma forma de monopolizar o acesso ao conhecimento, as sociedades européias inseriram-se na escrita, segundo Chartier. A partir daí, cai a idéia dos clérigos como intérpretes de Deus, e únicos conhecedores da natureza e do Estado; caem as proibições e limites sobre o acesso ao conhecimento, bem com a idéia da transmissão a um grupo restrito.

3. PRÁTICAS LITERÁRIAS E DE LEITURAS

3.1. “PROGRESSO” MEDIEVAL”

A Idade Medieval é considerada um período onde havia uma predominância das relações públicas entre indivíduos, os ritos comunitários e as redes de relação impunham aos indivíduos várias obrigações sociais para com o outro. Segundo Goulemot a essa imposição opõe-se as práticas das era Clássica. Nesse período a constituição do Estado transforma a sociedade civil, o poder público passa a ter o controle da violência, começa a controlar as pessoas, as produções dos bens e dos signos culturais. Assim, surge um espaço para as práticas mais reservadas que não deveriam se expostas, dentro da lógica civilizadora, dessa forma, esse espaço se torna o refúgio para o indivíduo, é o foro privado e a sua intimidade.
Em contraposição a essa era clássica, a literatura Medieval era praticada e transmitida em geral de forma oral, e possuía um caráter público. Alguns exemplos da literatura Medieval, como as canções de gesta, chansons de toile (contada pelas mulheres enquanto teciam), representam bem essas práticas. A leitura não é, ainda, uma prática íntima ou individual. No seu conteúdo, a temática das obras medievais, segundo Goulemot, está impregnada da defesa da cristandade e pela narração de guerras fratricidas. O grande progresso Medieval na prática de leitura se dá ainda em meados do século XII, pois, a partir dessa época, os monges copistas desenvolveram um tipo de leitura que utiliza apenas os olhos, prática que se tornará costumeira entre os leitores, até se tornar a maneira usual de ler a partir do século XVI, pelo menos para os mais familiarizados com a escrita e que tiveram acesso a uma alfabetização. A leitura silenciosa servirá para distinguir aqueles que sabem ler efetivamente dos leitores incipientes, isso até pelo menos o século XIX.

3.2. LEITURAS E LITERATURA NA ERA CLÁSSICA

Nos primórdios da Idade Moderna a invenção de Gutemberg – a imprensa dos tipos móveis -, segundo Burke representou sem sombra de dúvidas um avanço na solução do problema da escassez de textos da Alta Idade Média, e que tinha uma demandada crescente no final da Idade Média devido a um número maior de homens e mulheres alfabetizados. Mas Burke analisa o outro lado desse fenômeno, ou que ele chama de “efeitos colaterais”.
Em sua análise Burke chama atenção para reviravolta causada pela difusão do livro operada pela invenção da imprensa. As reações e as críticas a invenção, segundo Burke, foram diversas, desde dos antigos copistas, acostumados a reproduzirem textos manuscritos, pois perderam essa função, passando pelos eclesiásticos que temiam que a imprensa estimulasse a leitura por leigos das escrituras sagradas, e assim perderiam ou teriam sua autoridade diminuída; ao passo que a Igreja reagiria com a instituição do Índice Católico dos Livros Proibidos – Index; até mesmo alguns humanistas temiam a propagação desmedida dos livros. Assim, junto com a difusão de impressos, geraram-se grandes “problemas” como a leitura de outros livros que não a Bíblia pelos fiéis; a divulgação dos jornais e periódicos, aumentando a discussão de medidas políticas dos governos – que Burke chamou metaforicamente de o problema da “explosão da informação”.
Para Chartier na Idade Moderna experimenta-se, ainda, a “revolução da leitura”. Representada pela passagem da leitura oral para leitura silenciosa, proporcionando a abertura de novos horizontes. Através dela estabelece uma relação íntima, entre o leitor e aquilo que se está lendo. A leitura feita sozinho, segundo Chartier, permite uma maior liberdade para determinada audácias, como realizar as leituras heréticas, idéias críticas, ou mesmo pornográficas. Contudo, se a invenção da imprensa constituiu uma revolução, pois possibilitou uma maior reprodução e, por conseguinte, maior acesso a textos impresso, a revolução na leitura permaneceu restrito a poucos laicos, convivendo lado a lado com as leituras em voz alta, e coletivas.
Outra revolução na leitura, apontada por Chartier ocorreria no século XVIII, que seria a sucessão da leitura intensiva, onde o leitor tem acesso a poucos livros que lê e relê ao longo de sua vida várias vezes e repassa de geração para geração. Entre esses livros lidos, relidos e decorados figuravam principalmente a Bíblia. Para uma leitura extensiva, onde o leitor intensivo “consome” um número maior de impresso.
A literatura, na era Clássica, adquire uma maior liberdade quanto a seu conteúdo que conterá, cada vez, um maior número de diários íntimos, memórias, romances em primeira pessoa, relatos utópicos, romances libertinos e eróticos. Segundo Goulemot, esses últimos colocam o leitor no status de voyeur, permitindo uma apropriação de informações privadas de outro. O que para Chartier constitui um paradoxo, pois o leitor não se mostra apenas passivo nesse processo; ele se apropria do alheio e “invade uma terra que não lhe pertence”, dessa forma constituindo uma nova legitimação para a literatura. Esta adquire uma importância fundamental no processo de civilidade da sociedade, sendo, cada vez mais comum, as pessoas da elite posar para retratos portando um livro. Este, por sua vez, passa a representar um símbolo de poder, status de letrado e civilidade . Contudo esse fenômeno não ocorreu sem lutas, conforme postula Goulemot; pois a literatura da era Clássica está impregnada de obscenidades, do orgânico e mesmo do escatologismo barroco. Atos orgânicos como urinar, defecar são retratados em algumas obras; a embriaguez e o vômito, representando uma ofensa ao projeto de civilidade; o ato sexual, o coito, uma ofensa a moral e ao decoro.

3.3. LITERATURA ERÓTICA

O período Clássico foi de grande expressividade na produção das narrativas erótica, libertina, obscena, e pornográfica, reunindo-os, o gênero do romance erótico, ocupa um espaço na literatura do século XVIII. Segundo Goulemot, autores e filósofos clássicos como Voltaire, Rousseau e o Enciclopedista Diderot não permaneceram de alheios a esse movimento pornográfico. Datam da era Clássica títulos como Teresa Filósofa (1748), texto anônimo, mas recentemente atribuído ao marquês d'Angens , e as obras do marquês de Sade (1740-1814).
Aceito ou não, combatido ou exaltado, segundo Goulemot o romance erótico esteve em toda partes [classes sociais e lugares], na praça pública nos salões e nos boudoirs franceses, até mesmo nos panfletos revolucionários. Para Goulemot a literatura erótica representou uma luta por uma leitura da violação, pois no romance erótico se encontra uma narração dirigida ao leitor em forma de diálogos, que segundo Goulemot se aproxima dos romances contemporâneos.
Assim, segundo Goulemot, muito mais do que representação do erotismo e do obsceno, alguns romances, em especial os de Sade, representaram a transposição de proibições, deram em seu conjunto novo sistema de credibilidade ao romance.

3.4. NOVA FUNÇÃO DA LITERATURA ROMANESCA

Nos fins do século XVII, Goulemot afirma, o romance adquire o aspecto de criar certo efeito de verdade no texto literário. Esse começa a representar um discurso espontâneo em primeira pessoa, feito não para a publicação e por um “não-escritor”; o romance tenta, assim, dar um fundo de verdade à narrativa. Eis aí a problemática que surgirá em torno da proliferação dos livros, em especial o romance, considerado corruptor das mentes mais fracas. A problemática, para Goulemot, pode ser questionada pela ótica das ideologias políticas, posto que alguns romances inserem o leitor nos conflitos da época, sendo o romance em primeira pessoa uma representação, antes de tudo, de um relato íntimo. Nessas obras as revoluções são mostradas naquilo que não aparece nas práticas políticas e que há de mais escondido, as razões privadas como paixões incontroláveis, ciúmes e desejos amorosos.
Com o apogeu do romance no século XVIII, a relação entre leitor e a obra se modifica. O leitor extrapola o seu status de passividade. Para Goulemot, com Rousseau a verdade no romance passar a ser sugerida, e não mais preconcebida, assim, cada texto inventa um leitor. Com Rousseau, segundo Goulemot, inicia-se a uma nova fase na literatura, onde a relação leitor-obra vacilará entre o íntimo, já que o romance permite ao leitor o acesso ao privado; e o público onde o leitor se reencontra aos sabores das manifestações sociais, ideologias e contradições.

4. OS IMPRESSOS E AS MODALIDADES DE LEITURAS A PARTIR DO PRÓLOGO DA CELESTINA, DE 1507

Fernando de Rojas foi um escritor espanhol do início da idade moderna, autor da tragicomédia A Celestina. No prólogo de uma edição publicada em Saragoça em 1507, quando o trabalho já havia sido publicado anteriormente, em 1499, Rojas procura entender o porquê de A Celestina ter sido interpretada de maneira tão diversa desde que foi a público.
Baseado nos conhecimentos disponíveis na época, o autor entenderá que essa diversidade provinha tanto das diferenças dos humores quanto da variedade de expectativas e capacidades dos seus leitores, os quais ele distingue pela faixa etária. Observando as formas como estes utilizam o seu texto, o autor identifica três tipos de leitura na tragicomédia: 1. aquela que dá atenção apenas a alguns episódios da história, 2. a que prima pela retenção apenas de fórmulas, lugares-comuns e expressões feitas, de forma isolada e sem relação com o conjunto da obra, e, 3. a leitura que capta o texto em sua totalidade, sem as mutilações que procedem as outras duas formas de leitura. Esta última seria a leitura correta para Rojas.
Para Roger Chartier, no seu livro História Cultural: entre práticas e representações , essa tensão entre prática criadora dos leitores e as tentativas de autores e editores de impor interpretações corretas será constante na história da leitura e, de fato, é possível perceber já no final do século XVIII uma postura semelhante por parte do Filósofo alemão Fichte em relação à interpretação da sua obra Sobre o conceito da doutrina-da-ciência. Assim, tanto no próprio conteúdo do texto quanto por meio de prefácios, advertências e notas, os editores e autores dos livros buscavam impor o que consideravam a compreensão adequada de seu conteúdo.
Conforme Chartier, as recomendações contidas nas obras podem trazer pistas sobre as sociabilidades da leitura, porquanto é possível verificar orientações para como proceder ao efetuar a leitura em voz alta, o que indica a permanência desse tipo de leitura nos séculos XVI e XVII, e mesmo as possíveis relações entre textualidade e oralidade, tanto no sentido das diferenças consideráveis entre a cultura do conto e a da narração e a cultura da escrita. As aproximações entre as duas esferas, tendo em vista as fórmulas da cultura oral em textos destinados ao grande público e, por outro lado, o regresso à oralidade de muitos textos, como os clericais.
Ainda no prólogo de Rojas, percebe-se que, para ele, a ação dos impressores foi um dos aspectos que contribuiu para a uma compreensão que ele considerava equivocada do seu livro. Dentre os textos impressos na Europa Moderna, há um conjunto cuja unidade é, em parte, devida justamente à forma como se dava essa intervenção dos impressores na sua estrutura : a literatura de cordel.

5. A LITERATURA DE CORDEL

Nos séculos XVII e XVIII ganha impulso na França, assim como na Inglaterra (chapbooks) e na Espanha (pliegos de cordel), um tipo de publicação difundido, sobretudo, pela venda ambulante em grande quantidade e a um baixo preço. Inventada na cidade francesa de Troyes, a literatura de cordel era composta por uma grande variedade de gêneros literários e não apenas aqueles considerados populares. O fato é que as obras utilizadas pelos impressores dessa literatura estavam geralmente vinculadas à tradição erudita, como, por exemplo, no caso de contos de fadas que, provenientes do meio aristocrático, já haviam recebido anteriormente edições comuns em cidades como Paris antes de serem adaptadas pelos impressores de Troyes.
Ao mesmo tempo, como afirma Chartier, embora algumas vezes uma obra chegue a tornar-se livro de cordel muito tempo depois da primeira edição, não se pode dizer que a opção por textos mais antigos era uma tendência. Isso porque, logo que os direitos do primeiro editor sobre a publicação de um livro expiravam, os editores de Troyes procuravam igualmente introduzi-los na coleção de livros de cordel. Do mesmo modo, para o autor, não são os próprios textos, visto que também provinham dos meios eruditos, que determinam a singularidade dos cordéis, mas sim a intervenção editorial no sentido de adequá-los à capacidade dos leitores que pretendem abranger. Os impressores modificavam os livros orientados pelas representações que construíam “das competências e das expectativas culturais de leitores para quem o livro não é algo familiar.”
Com isso, apesar da diversidade dos gêneros, a seleção dos livros que entrariam no catálogo dos cordéis não era aleatória, mas seguiam uma linha no que se refere à constituição do texto, a qual os editores acreditavam adequada às possibilidades que eles atribuíam a seus potenciais leitores. Por exemplo, as histórias de ficção privilegiadas eram aquelas cuja narrativa fosse descontínua e repetitiva, não exigindo muito da memória. Será, portanto, visando a reforçar os aspectos que consideravam necessários para alcançar o amplo público que desejavam que os editores de cordéis promovessem significativas intervenções nas obras a serem publicadas.
Essas intervenções poderiam dar-se de diferentes maneiras. Uma delas consistia na multiplicação dos capítulos e na ampliação do número de parágrafos, fazendo com que o texto ficasse distribuído de maneira menos densa na página. Apesar dessa não ser uma prática introduzida pela literatura de cordel, é nela que se intensifica. Esse fracionamento está relacionado à idéia de que a leitura não será contínua. “Daí também a multiplicação, nos textos do corpus de Troyes, das recapitulações e dos resumos que permitem voltar a ligar o fio de uma leitura interrompida.” Outra forma de intervenção se dava na própria construção dos períodos do texto, através da substituição ou contração de frases e de cortes em trechos das histórias considerados supérfluos.
Convém destacar que a intervenção dos editores se dava também no sentido de suprimir expressões consideradas contrárias aos preceitos morais e religiosos. Isso mostra, segundo Chartier, que a literatura de cordel participa da Reforma Católica na França, eliminando os conteúdos considerados nocivos à crença e não apenas editando obras religiosas, o que, diga-se de passagem, era amplamente realizado. Assim, esse trabalho de transformação da forma e do conteúdo dos textos, realizado pelos impressores, mas também por clérigos e homens de letras, tinha por finalidade moralizar o conteúdo que seria lido e também simplificá-lo de maneira a possibilitar essa leitura pelos seus compradores. Entretanto, essas interferências muitas vezes acabavam por aumentar as dificuldades na compreensão, muito embora esta, no final das contas, não fosse necessariamente a aspiração dos compradores dos livros, para os quais uma leitura minuciosa da obra parecia desnecessária em face à importância dela como aglutinadora de conhecimento, mesmo que não lido.
Enquanto que inicialmente os compradores de cordéis viviam principalmente na cidade, com o tempo a clientela vai se tornando cada vez mais rural. Essa será a tendência no século XVIII, no qual os cordéis, apesar da variedade de gêneros literários que abrangem, passarão a nomear especialmente os romances e contos e aos poucos passarão a integrar a cultura camponesa e mais tarde serão descriminados juntamente com ela pelas elites da Revolução.

6. PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DAS LEITURAS CAMPONESAS EM FRANÇA NO SÉCULO XVIII

As constatações da elite letrada francesa acerca do interesse dos camponeses pela leitura no final do século XVIII foram variáveis e contraditórias. Para alguns os camponeses não possuíam qualquer contato com os livros, uma vez que, em sua maioria, nem sequer sabiam ler. Para outros, porém, a leitura era algo que os atraía e bastava que lhes dessem oportunidades de ter acesso aos livros para que bons resultados fossem atingidos. Dentre os entraves apresentados à expansão da leitura entre os camponeses era destacada a baixa circulação de livros no campo e a impossibilidade da instrução por falta de professores. A posição da Igreja parece contraditória, pois, embora em certos momentos seja representada como uma instituição contrária à leitura por parte dos camponeses, por outro, ela “enquanto instituição, não deixa de ser a única a incitar à leitura”. O fato é que até mesmo os padres são criticados por não lerem, dizia-se inclusive que liam tão pouco quanto o povo. De resto, é possível encontrar também recomendações por parte de clérigos para que eles concedessem livros aos camponeses.
Entre os livros muito citados como pertencentes aos camponeses encontram-se os livros das Horas. A considerável presença das obras religiosas no campo está relacionada a uma política diocesana de distribuição de livros, depois favorecida por um regime instituído pela Coroa em 1777, segundo o qual poderiam ser reeditadas livremente as obras cujos direitos tivessem expirado. Os homens de letras que comentam esses aspectos da cultura camponesa no final do século XVIII não incluem as obras religiosas entre os cordéis; a essas alturas estes parecem estar associados a crenças supersticiosas, fábulas inúteis e preconceitos antigos que levam alguns homens de letras a acreditarem na necessidade impor livros que eduquem o homem do campo.
Buscava-se, portanto, evitar que a literatura, que deveria ser fonte de instrução e patriotismo, se tornasse exemplo de depravação para os camponeses com a leitura de obras perigosas trazidas pelos vendedores ambulantes, que são muito mencionados como difusores de livros de baixa qualidade, como os almanaques e os de cordel. Mais de uma vez aparece a oposição entre “o camponês e o comerciante, o natural e o forasteiro, a piedade e a virtude naturais dos campos e a corrupção vinda de fora, da cidade.”
Talvez, decorrente desse tipo de percepção do campo em oposição à cidade, a idéia de que a leitura, em voz alta durante os serões, fazia parte do cotidiano dos camponeses, permeava o imaginário de uma elite letrada que guardava expectativas em relação ao homem do campo que nem sempre correspondiam às suas atitudes. Para Chartier, se por um lado esse tipo de representação da família camponesa que escuta atenta a uma leitura oralizada era um motivo recorrente nas obras de arte do século XVIII, por outro lado não é possível encontrar evidências documentais que indiquem que os camponeses tivessem de fato o hábito de realizar esse tipo de leitura em seus espaços de sociabilidade.

7. O POVO E A PALAVRA IMPRESSA

A historiadora Natalie Zemon Davis em seu livro, Culturas do Povo – Sociedade e Cultura no início da França Moderna-, trata entre outras questões, da relação entre: o povo e as práticas de leitura e escrita, e que influência a palavra teve numa sociedade onde o dito povo em sua boa parte não era alfabetizado.
Para compreender a trajetória desta prática cultural, Davis traça um paralelo desde a entrada da palavra impressa na vida popular do século XVI, até o século XVIII com a consolidação da função da (..) no seio da sociedade moderna, fazendo desta uma de suas grandes características. Para Davis a palavra impressa, juntamente com seu uso e deciframento, penetrou de variadas e complexas formas na vida popular moderna, criando novas redes de comunicação, abrindo novas opções para o povo e também oferecendo novas formas de controlá-lo .
Para compreender essa trajetória há inicialmente a problematização de duas questões primordiais: que influência a escrita e a leitura poderiam ter numa sociedade onde o nível de analfabetismo era elevado até mesmo para os nobres? E o que significam exatamente as palavras povo e popular dentro da teia da construção e dissipamento dos saberes?
No século XVI a palavra povo era utilizada com as seguintes conotações: nativos do reino, corpo de habitantes no qual uma lei os objetivaria, cidadão não letrados e ainda o trabalhadores da terra e ou aqueles que se ocupavam de serviços menores . Na cultura popular escrita do século XVII e XVIII continua sendo utilizado como povinho, contudo, passa a designar e enfatizar mais os camponeses do que os cidadãos urbanos.
Davis observa que durante os séculos XVII e XVIII, houve na França uma grande impressão de livros chamados de capa azul, onde seus editores tinham o objetivo de manter o cidadão comum informado, por meio da venda destes livros que tratavam sobre as necessidades e gostos das aldeias, na Inglaterra houve um movimento parecido a chamada literatura elizabetana – por ou para o cidadão comum –. No entanto, observa que não é possível traçar um perfil de um grupo social dado, pelo simples fato que nem sempre a escrita é feita por um cidadão comum e também não são apenas estes que consumiam estes impressos. Outro ponto que é necessário chamar a atenção é que o leitor não necessariamente concorda ou toma pra si aquilo que lê, que a construção da compreensão é bastante complexa e repleta de variáveis.

Assim, poderemos entender melhor as relações entre a palavra impressa e o povo se fizermos duas coisas: primeiro, se complementarmos a análise temática dos textos com evidências sobre os públicos, que possam oferecer um contexto para o significado e os usos dos livros; segundo, se considerarmos um livro impresso não apenas como uma fonte de idéias e imagens, mas como um mensageiro de relações. Os dados para apoiar tal abordagem estão espalhados pelas páginas das próprias edições originais; nos estudos sobre a alfabetização e os dialetos, a compra e o preço dos livros, a política de publicações e de produção e em fontes sobre os costumes e a vida associativa de camponeses e artesãos.

A partir da análise comparativa de outros estudos sobre produções escritas e o uso da leitura na Europa moderna, Davis procura no artigo enfatizar a maneira como se deu esta estrutura social de consumo e produção intelectual, e os valores que traçaram o uso da alfabetização e da palavra impressa. Desse modo o texto foca o uso dos livros impressos entre ambientes populares definidos na França moderna, e defende a idéia que as cidades de: Paris, Lyon, Ruão, Toulouse, Poitiers, Bourdeux, Troyes, tornaram-se o centro editorial da Europa, que o modelo adotado pelas gráficas francesas servia de modelo para outros editores europeus, justifica-se pelo fato que as gráficas francesas mesmo após a reforma religiosa continuaram sob o controle de “capitalistas industriais” e alguns artesãos (famílias de editores) que decidiam o que era lucrativo/útil para ser impresso.
Os camponeses do início da idade moderna geralmente só obtinham acesso a palavra escrita ou a leitura através de anúncios oficiais, da igreja ou através de tabeliães itinerantes que passavam nas aldeias para homologar contratos, nos inventários quase não se mencionava manuscritos ou livros, entretanto a questão não se tratava apenas de poder aquisitivo, durante os primeiros séculos da era moderna, era deveras difícil encontrar um livreiro próximo ou mesmo a presença de gráficas no mercado mais contíguo a aldeia, além de que o francês era a língua mais utilizada nas impressões o que dificultava a compra de impressões pro camponeses que eram letrados apenas em dialetos.
O livro mais popular no período para o público camponês eram os Calendários de Pastor, que além de conter informações de uso agrícola, tinham também ditos populares e questões de comportamento, o que Davis questiona é a usabilidade de um livro que continha informações que todo agricultor sabia ou qualquer parteira. As edições do século XVII eram repletas de figuras e transformou-se num verdadeiro almanaque, mas na verdade reunia em si um conjunto de práticas comuns entre os camponeses, o que na verdade o tornava um uniformizador de comportamentos do que propriamente um formador destes.
Como a idéia de impacto da produção escrita e leitura está ligada à mudança de comportamentos sociais, até então os camponeses tinham nas suas tradições orais e locais todo o seu substrato cultural? Mas na passagem do século XVI para o XVII institui-se a villée nas aldeias, que era um ponto de encontro dos habitantes em determinadas épocas do ano onde havia intenso convívio social onde homens alfabetizados liam livros em voz alta, o título mais popular era Ésopo.
As gráficas passaram a disponibilizar livros para essas reuniões, mas em sua maioria eram edições bem antigas, cheias de erros tipográficos e com linguagem ultrapassada, quanto nos meios urbanos os cidadãos experimentavam as novas edições em grego e latim, ou num francês mais contemporâneo. O camponês que realizava a leitura, na verdade traduzia para o entendimento dos ouvintes, e este ato de escuta ia formando novos universos mentais dentro do imaginário camponês, com o advento da reforma a bíblia em francês passou a figurar entre os títulos mais populares para essas leituras. Para a maioria dos camponeses, a religião da bíblia, dos salmos, dos consistórios deixava pouco espaço à cultura oral e ritual, tradicional do mundo rural, às formas existentes de vida e de controles sociais , talvez por isso a penetração do calvinismo entre o campesinato francês tenha sido mais forçada por poderosos do que propriamente uma adesão doutrinária.
Natalie Davis chama a atenção que o trabalho do editores protestantes foi de fundamental importância para disseminar a cultura escrita na área rural, pois, estes não temiam a rejeição ou a possibilidade de lucro zero, objetivavam levar o evangelho reformado a todas as pessoas. Esse fluxo de idéias e de livros motivou também a escrita de livros que tratavam do camponês como ator, muitos escritores na modernidade francesa buscaram olhar para como pensava o camponês na produção das suas obras, não somente o que o camponês precisava saber como nos antigos calendários. Os almanaques do século XVII e XVIII continham novas informações sobre cultivo e colheita, além de informações comerciais.
Para o campesinato francês a palavra impressa abriu novos horizontes no imaginário, contudo não foi eficaz ao ponto de transformar práticas sociais ou de trabalho, por conta principalmente do seu difícil acesso aos livros e do que era publicado, além do uso destes para o camponês.
Já o cidadão urbano vivia numa realidade diferente, boa parte dos artesãos e outras profissões correlatas, eram alfabetizados, até meninas órfãs aprendiam o ABC nos orfanatos recém criados. O estímulo a educação estava associado ao progresso econômico, tecnológico e social, só o trabalho gráfico criou uma enorme aglomeração de ofícios (incluindo-se a encadernação e a moldagem de tipos gráficos), nos quais o índice de alfabetização eram altos .
Naturalmente não era homogêneo o nível de alfabetização, profissões como gráficos e boticários tinham altos índices de leitura, enquanto pedreiros e cultivadores urbanos apenas sabiam assinar o próprio nome. Uma diferença significativa entre o potencial leitor camponês e o urbano é o fato que o segundo tinha maior domínio da língua francesa, que no século XVII já era a língua oficial do governo e deste modo o cidadão urbano poderia aproveitar melhor o que estava sendo impresso.
O leitor urbano muitas vezes não comprava o livro, compartilhava-o através de grupos de leitura, juntado letrados e iletrados, em reuniões de divertimento que contrastavam a villée rural, os cidadãos das cidades possuíam livros específicos para a leitura em voz alta ou para consulta (relacionados ao trabalho que desenvolviam), eram comuns também os manuais de aritmética e de profissões, como também os livros com vidas de santos. Uma característica bastante específica nos manuais produzidos por e para leitores urbanos, é a intenção de estabelecer diálogo com o leitor, esta ação acontecia especificamente nos manuais, onde artesãos das mais diferentes áreas compartilhavam suas experiências com outros ou até mesmo com acadêmicos.
Mulheres também se lançaram no mercado editorial, se concentrado em manuais de bom comportamento ou da prática do parto, e dentre as citadas no texto, acreditavam que suas ações incentivariam outras mulheres ler e escrever. Ao analisar o menu peuple Natalie Zimon Davis defende que entre o povo, seja rural ou urbano, a chegada e instalação no cotidiano da leitura e da palavra impressa não minou as suas tradições, pelo contrário fortaleceu a cultura já existente. As imagens mentais que criavam enriqueceram suas relações, mas não a mudaram, pois, não eram apenas receptores passivos do que liam ou ouviam apenas, eram usuários e interpretes e ajudavam a dar forma ao que era produzido.

8. O UNIVERSO DA LITERATURA CLANDESTINA NO SÉCULO XVIII

É difícil encontrar título melhor que o dado por Robert Darnton a seu trabalho sobre a literatura clandestina no século XVIII, edição e sedição. Como pensar na revolução francesa sem os grandes autores das luzes? É o que constatou Daniel Mornet, antigo historiador que teve por tema o mesmo de Darnton, o universo dos livros no antigo regime. Tal trabalho, ou melhor, a constatação da ausência dos grandes autores das luzes, serviu de impulso para a imersão de Darnton pelo universo da literatura proibida do século XVIII. Pois que, sem dúvida esses livros circulavam na França, mas não de maneira lícita, devido à censura do Estado absolutista francês, e sim por debaixo dos panos, onde os códigos da sociedade do século XVIII se fazem necessários para se entender como tais livros chegavam aos ávidos leitores franceses.
Mas, antes de tudo, o autor adverte que: deve-se entender a presença de sedição no título não como tomada de armas nem violência esporádica contra as autoridades, e sim como um desvio, que mediante o texto e no texto, se instaura com relação às ortodoxias do antigo regime; sendo assim não tem respostas para a apropriação da leitura desses livros proibidos pelos leitores, por isso deve entender-se como edição e sedição, não como edição, logo sedição, não há a relação de causa e conseqüência direta, mas possível.
Assim, a primeira grande pergunta a ser feita seria “quais são os livros proibidos e por que são proibidos?” É uma pergunta um tanto difícil de responder, pois não há nenhuma definição precisa, sendo a mais usual, “todos os livros que ferem a religião, o Estado e os costumes”. É preciso lembrar também que o Index católico não teve força de lei na França, pois não foi proclamado como édito pelo rei nem registrado nos parlamentos. Apesar de alguns esboços de listas, não houve nenhum que contivesse com clareza todos os livros proibidos.
Assim o livro não sofre uma separação rígida entre o legal e o ilegal, as definições, ou a falta de uma precisa, faz com que sejam muito próximos o que faz com que os Livreiros, sabendo dos perigos de tal comércio, usassem códigos e estratégias. A primeira e mais importante é codificar os livros nomeando os proibidos por “filosóficos”, artimanha utilizada pela maioria dos livreiros e que abarcava livros pornográficos, de cunho político e também os filosóficos. Outra medida importante e que se faz necessário entender, é que as grandes editoras não produzem as obras “filosóficas” elas trocam com pequenos editores que vêem nesse mercado uma maneira de fazer dinheiro, o que, entretanto, não lhes garante muita prosperidade, pois, mesmo comerciando por baixo dos panos, cedo ou tarde são presos e quando soltos retomam o negócio do zero.
Entendido como funciona a produção dos livros proibidos, ou impróprios, vamos entender como estes chegavam à França, pois não são produzidos lá, mas nos arredores (na Suíça, na Holanda, etc.), e são enviados aos ávidos leitores, à medida que são condenados, e é bem bom que sejam queimados pelos carrascos; assim, nesse momento, a procura aumenta consideravelmente. Mas, uma vez produzidos, trocados das pequenas para as grandes editoras, os livros proibidos chegam aos franceses através de expedientes diversos, sendo o mais interessante o “casamento”, onde folhas de livros ilegais são escondidas dentro dos livros legais, com o intuito de evita chamar atenção dos inspetores que também são aliciados com propinas. (p.33-34)
Ainda há aqueles que recorrem aos “seguros”, naturalmente utilizados pelos grandes livreiros que podiam arcar com os custos, que seria o “contrabando profissional” na gíria dos livreiros. Encarregam-se de levar os livros proibidos além da fronteira por uma porcentagem do valor dos livros, assim contratam camponeses que levam os livros nas costas e depositam em depósitos secretos de onde são reenviados para os locais como mercadoria nacional. Os custos são repassados até o comprador, se pegos os seguradores pagam a quantia dos livros apreendidos, e os camponeses vão para as galés.

8.1. MERCADO LITERÁRIO ILÍCITO.

Para se entender como funciona o mercado literário na França, é necessário explicar os três níveis de privilégios que existiam na França do Antigo Regime: os livros traziam um privilegio do Rei, pois todo livro passa pelo Rei e recebe uma carta de privilégio afirmando sua legalidade, qualidade e exclusividade da venda ao detentor da carta de privilégio; o segundo privilégio seria dos livreiros, pois recebem sua mestria do rei, ficando aptos a se tornarem membros de uma corporação oficial explorando o monopólio de seu ofício; o terceiro e último são os privilégios gozados pela comunidade dos livreiros, como a função de polícia que também exerciam nas visitas as tipografias onde impediam a publicação de textos não autorizados.
Por isso torna-se necessário que tudo o que inova seja produzido na ilegalidade, que fuja de Paris, da França, se aloje nas vizinhanças, e encontre nas províncias, inimigas dos livreiros de Paris, um refúgio seguro para a entrada das obras “filosóficas”. As grandes editoras, como a STN estudada por Darnton, necessitam saber o que os franceses querem ler, pois, como vimos, estão longe, dessa forma encontram três maneiras de “auferir a pressão” do mercado francês, seja através de agentes literários em paris, de representantes em viagem por toda França, ou de cartas recebidas dos livreiros do reino. As demandas, apesar de variarem de uma província para outra, não são tão diferentes, são apreciados romances leves, a literatura das luzes e interesse pelos assuntos do dia misturados a desafeições ao regime como o decaimento do Rei e dos ministros.

8.2 CICLOS DO MERCADO LITERÁRIO ILÍCITO

Em seu trabalho, Darnton procura articular três figuras pertinentes ao mercado literário ilegal, o vendedor ambulante, o dono de loja e o grande livreiro, propondo capítulos individuais através de estudos de casos, mas não nos deteremos neles, iremos às constatações, pois o espaço é curto. Cada qual encarna uma etapa da difusão do livro proibido, que vai das artérias aos capilares do circuito clandestino.
Assim, se começarmos com o livreiro médio, veremos que possuem má reputação, sendo as queixas constantes, afinal nada mais comum que ser enganado por um deles, pois fazem de tudo para não gastar dinheiro. Inventam várias desculpas uma vez que receberam os livros: atraso, a encomenda do concorrente chegou primeiro, as folhas estão estragadas, etc. Mesmo quando emitem uma letra de câmbio com prazo determinado, adiam o pagamento. Mas precisamos entender que eles negociam em uma atmosfera pesada, na qual o regateio se transforma em desconfiança e conchavo, especialmente quando se age por debaixo dos panos; basta lembrarmos das práticas da profissão e das condições econômicas que a sustentam, sempre muito próxima da falência.
Entretanto, tal situação dá margem a outros expedientes utilizados pelos pequenos lojistas, pois se não paga, o editor tende a colocá-los na justiça, o que evita pela origem da mercadoria e pela demora no julgamento. Mas quando o faz o pequeno livreiro se aproveita da ineficácia do sistema judiciário, separando-se por corpos e bens e fugindo para nunca mais se achado sem pagar o que deve. Essas coisas aconteciam porque o mercado dos livros proibidos era cheio de aventureiros, que engendravam mil táticas e estratégias para se abastecerem sem pagar suas encomendas, e dos fornecedores, que se esforçam a o Máximo para aumentar suas vendas.
Assim, obrigados a enviar pedidos a lugares e pessoas que nunca tinham visto, as editoras decidiram regular o comércio por um princípio que o protegerá da malevolência: a confiança. (p.101) Esta assume acepção quase técnica, funciona como uma cotação onde se dá confiança a medida que os negócios vão bem e paga-se em dia, e retira-se quando do contrário. Para saberem como vão os negócios de seus clientes, são enviados agentes, consultam-se amigos e familiares através de cartas. Estas funcionam como cartas de recomendação onde as “faculdades morais” também são analisadas e fazem parte da cotação da confiança. Assim, não basta ser rico, mas que se recomende também pelos bons costumes, pois se busca o cliente com “boa conduta”, pois nas “faculdades morais” é que se regula a confiança. Dessa forma, desenha-se o tipo ideal do bom livreiro: rico, mas honesto; empreendedor, mas não aventureiro; casado, mas não sobrecarregado com muitos filhos; instalado e reconhecido em sua comunidade; frugal, leal e assíduo no trabalho.
Outro sinal importante onde a confiança é firmada seria a assinatura, pois sem nunca ter visto o cliente, a assinatura é uma das poucas, se não única, maneira de reconhece-lo. A assinatura ainda possui duas funções, uma prática e a outra simbólica: a primeira refere-se a uma forma de proteção contra o risco de fraudes, pois só se dá valor a assinatura do cliente; a segunda funciona como um emblema, visto que corporifica não apenas seu crédito, mas também sua honra, seu prestigio, sua pessoa.
Dessa forma, vê-se que o mercado de livros no século XVIII baseia-se em valores tais como confiança, honra e solidez para manter o equilíbrio, mas choca-se com o mundo tal como se organiza ao redor do mercado. Este é desestabilizado garças as práticas utilizadas por aqueles que aplicam expedientes nos grandes livreiros ou editores, o que abala o equilíbrio do mercado baseado na confiança.
Estes livreiros do século XVIII podem ser divididos em dois grupos, compostos por pequenos varejistas e ambulantes, que ocupam as margens do mercado, de um lado, e os livreiros estabelecidos, que formam uma rede para proteger seus interesses, do outro. Dessa forma os livros proibidos tendem a escorrer para a margem do mercado, sendo negociados, principalmente, pelos pequenos, pois os grandes só negociam com o proibido quando o risco é muito pouco, e os médios quando os lucros estão muito baixos.
Por fim é importante lembrar que aqueles que negociavam com livros, os profissionais, não o faziam para difundir ideologias, mas para obter lucros, esta era sua visão de mundo. Assim fica fácil entender a citação de Darnton: “Os livreiros e editores estão persuadidos de que os livros participam de um sistema simples no qual a qualidade física e o conteúdo intelectual da mercadoria só devem ser privilegiados na medida em que aumentem os ganhos.” Dessa forma, Se os livreiros eram intermediários culturais, o eram por incutir os livros na rede livreira do antigo regime. Intermediário entre a oferta e a procura, o comercio livreiro, é o “sismógrafo” da literatura tal como esta evoluiu no mercado de idéias da França pré-revolucionária.



9. CONCLUSÃO

Entre todas as diversas formas de leitura que encontramos na França moderna, estas estão ligadas as condições materiais existentes nessa época. A difusão do livro com Gutenberg e seus tipos móveis, proporcionou novas práticas de leitura, da leitura em voz alta, a leitura solitária, em silêncio. Também podemos constatar tal afirmativa na oposição entre o campo e a cidade, entre o analfabetismo do primeiro, e as exigências provenientes de um público mais letrado no segundo.
Também não podemos esquecer que a própria leitura, como é possibilitada aos camponeses, não traz mudanças culturais significantes, ou mesmo das maneiras de sociabilidade. Seja pelo índice de analfabetismo expressivo no campo, seja pela dificuldade de alcance dos livros, em sua maioria almanaques. As imagens mentais que os livros criavam enriqueceram as relações dos homens do campo, mas não a mudaram, pois, não eram apenas receptores passivos do que liam ou ouviam, eram usuários e interpretes e ajudavam a dar forma ao que era produzido.
Dentro dessa perspectiva aberta pela Natalie Davis, podemos encontrar o livro como um ingrediente do universo revolucionário da França do século XVIII, e não como uma causa direta desta. Darnton lembra que os livreiros não eram movidos por motivos ideológicos, mas pelo lucro, dessa forma o comércio livreiro funcionava como um “sismógrafo” da literatura tal como esta evoluiu no mercado de idéias da França pré-revolucionária. O que nos leva a pensar que o descontentamento com o regime absolutista francês leva a busca pelos livros proibidos no antigo regime e não o oposto, assim o livro pode ter funcionado como catalisador da revolução, mas não como sua causa direta.
Por fim, encontramos a intervenção do editor nas obras que imprimiam e distribuíam, recortando, colando e resignificando, em certos momentos, as obras por motivos diversos, como a facilitação da apreensão pelo público analfabeto que teria acesso a obra apenas através da oralidade. Mas também as intervenções feitas nas obras tinham um sentido moralizador, principalmente nos cordéis como mostra Chartier, evitando termos e conteúdos que fossem opostos aos bons costumes e a religião, sendo o oposto dos livros veiculados principalmente por ambulantes. Nesse momento é importante lembrar que tais obras impróprias, são aquelas pertencentes ao comércio de livros ilegais, que também eram comercializados por mascates.



10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

• BURKE, Peter. Problemas causados por Gutenberg: a explosão da informação nos primórdios da Europa Moderna. Artigo. Instituto Estudos Avançados - Universidade de São Paulo. Tradução de Almiro Piseta. 2002.
• CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2° ed. Lisboa: Difel, 2002.
• CHARTIER, Roger. As Práticas da Escrita. In: História da Vida Privada: Da Renascença ao Século das Luzes. Vol. 3. Companhia das Letras. 3ª reimpressão. São Paulo. 1991.
• CHARTIER, Roger. Do codige ao monitor: A trajetória do escrito. Artigo. Instituto Estudos Avançados - Universidade de São Paulo. Tradução de Jean Briant. 1994.
• DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. Trad. de Myriam Campello. São Paulo: Cia. das letras, 1992.
• FICHTE, Johann Gottlieb. A doutrina da ciência de 1794 e outros escritos. 3ªed. São Paulo: Nova cultural, 1988. (Os pensadores).
• FISCHER, Steven R. História da leitura. Trad. de Claudia Freire. São Paulo: UNESP, 2006.
• FOISIL, Madeleine. A. Escrita do Foro Privado. In: História da Vida Privada: Da Renascença ao Século das Luzes. Vol. 3. Companhia das Letras. 3ª reimpressão. São Paulo. 1991.
• GOULEMOT, Jean Marie. As Práticas Literárias ou a Publicidade do Privado. In: História da Vida Privada: Da Renascença ao Século das Luzes. Vol. 3. Companhia das Letras. 3ª reimpressão. São Paulo. 1991.
• DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo – Sociedade e Cultura no Início da França Moderna. Oficinas da História, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

A LOUCURA NA IDADE MODERNA

Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História




História Moderna II.
Professor: Severino Vicente.


A LOUCURA NA IDADE MODERNA






Recife, 2008.









A LOUCURA NA IDADE MODERNA.


Anderson Walace
João Carlos
Márcia Roberta
Marcelo Renan








Recife, 2008
SUMÁRIO:


Introdução.................4
A loucura ao longo dos anos.....5
Corpo e alma: a transcedentalidade e as causas da loucura........................7
Loucura: Formas de tratamento........9
A caminho da internação..............11
Considerações finais................16
Bibliografia.............17






INTRODUÇÃO

Ao longo dos séculos o Homem se deparou com situações que punham em questão a sua racionalidade, seus comportamentos e, sobretudo, a sua sanidade mental.
A loucura esteve presente em todos estes momentos para pôr a prova, tanto a razão como a des-razão do Homem, com ela mesma, a loucura, por vezes sendo admitida ou sendo repudiada, tratada como patologia social.

As agonias e infortúnios sofridos pelos supostos portadores de alguma perturbação mental não estavam apenas diretamente ligadas a sua saúde mental, mas também a complexos jogos impostos pelos Estados para higienizar as suas cidades e aproveitar a mão de obra barata em seu desenvolvimento econômico.

A loucura na Era Moderna foi utilizada como ferramenta neste jogo de interesses das elites, pouco importando as condições e formas de tratamentos oferecidos aos portadores de alguma perturbação mental, que por vezes, eram internados sem as mínimas distinções com os demais doentes geralmente cidadãos em condições extremas de pobreza, arbitrariamente diagnosticados como loucos.
As mudanças das mentalidades tanto como as mudanças sociais contribuíram significativamente na forma de tratar do louco neste período.

Em nosso trabalho iremos abordar os principais conceitos sobre a loucura na Idade Clássica (entre os séculos XVII e XVIII), os tratamentos utilizados no caminho pela cura definitiva das doenças da mente, e a reação da sociedade na forma de tratar o louco como agente causador da desordem social, além de analisar alguns dos principais elementos sociais que contribuíram para a evolução do sistema manicomial do século XIX e XX.




A LOUCURA AO LONGO DOS ANOS.
Anderson Walace



Em cada tempo as sociedades instituem formas de condutas e comportamentos, às quais os indivíduos devem enquadrar-se a fim de serem aceitos e poder viver “livremente” em sociedade. Essa busca tenta definir como os indivíduos devem se colocar na sua vida profissional, na sua vida sexual, na sua forma de expressão e até no seu lazer. Sendo rejeitados e excluídos, sob o estigma de louco, todos os que divirjam desse comportamento pré-estabelecido.

Na Idade Antiga, o louco era entendido sob três perspectivas: a do enfoque mitológico, o da concepção passional e o da doutrina orgânica. Naquela sociedade os loucos eram compreendidos como vítimas do capricho dos deuses, que os lançavam no estado de desequilíbrio e insensatez (PESSOTTI, 1995). Conforme o mesmo autor, mais tarde, Hipócrates inaugurou a hipótese de que a loucura acontecia por influência de alterações orgânicas vinculadas aos humores, compreensão esta que perdurou até a medicina dos séculos XVIII e XIX.

Na Idade Média, a associação e a identificação da loucura se deram no campo da demonologia, com predomínio da concepção religiosa, dos feitiços. Várias obras foram lançadas neste período com o intuito de explicar e fundamentar estas idéias. Foucault (1999), olhando para a questão da loucura na Idade Média, pontua que ela está dividida entre os poderes do espírito que lhe dão o sentido abstrato e as causas orgânicas que lhe dão a existência concreta.

Os loucos eram admitidos e podiam vagar pela cidade; eles não se casavam, não participavam de jogos, eram alimentados e sustentados pelos seus familiares, mas quando, por vezes, tornavam-se excitados e perigosos, eram afastados do convívio social e “presos”;

Na Idade Moderna, depois do século XVII, o entendimento da loucura foi se modificando pelos construtores da história; então teve início o campo da formação médica e psicológica que, com o passar dos tempos, classificou a loucura como doença mental, uma patologia da função nervosa e, por vezes, relacionada aos espíritos animais.

A fim de estudar a loucura Foucault formula que os domínios da atividade humana estão divididos em quatro categorias: O TRABALHO, A SEXUALIDADE, A LINGUAGEM e AS ATIVIDADES LÚDICAS (jogos e festas), afirmando que as pessoas que escapam às regras definidas nesses domínios são chamadas de indivíduos marginais, comumente presentes em todas as sociedades. No caso da loucura, uma mesma pessoa passa a ser excluída e rejeitada em todos os domínios. Concluindo que a loucura é um estado de alteração, com distúrbio no pensamento ou demonstrado por palavras e atos, é um processo mental que pode traduzir comportamentos e idéias, ou seja, a loucura pode derivar de causas físicas, passionais ou “internas”.

Por ser a produtividade o núcleo da lógica da sociedade, a inaptidão ao trabalho foi considerada o principal critério da loucura, o que tornou as pessoas inaptas não mais toleradas. Logo foram criados estabelecimentos para todos aqueles que se encontravam fora da ordem social: loucos, desempregados, doentes, velhos, prostitutas, considerados grupos de vagabundos para a nova sociedade.
Sendo a sociedade européia desse período, século XVII ao XIX, uma sociedade essencialmente burguesa, práticas sexuais como masturbação, homossexualidade, ninfomania foram consideradas anomalias identificadas à loucura. Neste período, os leprosos, mendigos, desempregados, prostitutas, pessoas sem teto e os loucos eram retirados das ruas para limpar as cidades.

Com relação à linguagem Foucault faz referência a uma curiosa afinidade entre a literatura e a loucura, especialmente, porque a primeira não está obrigada às regras da linguagem formal e cotidiana, ocupando a literatura uma posição também marginal.
No teatro tradicional europeu, como exemplo das atividades lúdicas, os loucos divertiam os espectadores. Era um personagem que exprimia a verdade que os outros atores e espectadores não o fariam conscientes.

Cabe destacar também que, em meados do século XVII, a loucura tornou-se medicalizada, inaugurando o papel do médico neste contexto. Philippe Pinel (nascido em Saint André em 20 de Abril de 1745 e falecido em Paris 25 de Outubro de 1826) foi o médico francês, considerado por muitos o pai da psiquiatria, entendendo que o louco precisava de um espaço próprio, com cuidados médicos; criou o hospício, como um local adequado de internação sobre a loucura, um local de recolhimento de pessoas que, de uma forma ou de outra, simbolizavam perigo à sociedade, “libertando” destes estabelecimentos todos os vagabundos, já que, dentro da lógica industrial, eram aptos a trabalhar. Separadamente, os loucos não tendo a faculdade de trabalhar, tornaram-se pacientes cujos distúrbios tinham causas que se referiram ao caráter psicológico, tornando o estabelecimento de internação um hospital psiquiátrico, abrindo as portas para o nascimento da psiquiatria, cujo objeto de estudo configurava-se nos distúrbios mentais.

Por fim, Foucault revela que tal medicalização do louco produziu-se por razões econômicas e sociais, pois o status de louco não variou em nada entre as sociedades primitivas e avançadas.




CORPO E ALMA: A TRANSCENDENTALIDADE E AS CAUSAS DA LOUCURA.
João Carlos Berenguer.


Segundo Foucault, na Idade Clássica, os problemas da loucura giravam em torno da materialidade da alma. De forma que no final do século XVII e início do XVIII, acreditava-se que a alma do individuo, quando afetado pela loucura, esteve afastada dele durante esse período, estando assim protegida pela própria doença contra o mal.

Voltaire foi um dos primeiros a tratar o cérebro como um órgão do corpo, podendo assim padecer por diversos males. Suspeitava que a faculdade de pensar pudesse sofrer desarranjos. Contudo com isso não refutava a relação deste com a alma. Explicava que a relação do cérebro para com a alma era como a do olho para com a vista (FOUCAULT, 1999. p 211). Contudo tal problemática só foi mais bem aceita no século XIX, de forma que no século XVII e XVIII a loucura era uma doença na qual estavam envolvidos o corpo e a alma, e, portanto era necessário descobrir quais as causas de tal doença.

Willis tratou do que se chamaram causas próximas da mania. Primeiro observava-se uma alteração das funções mecânicas, a movimentação violenta dos espíritos e também a alteração química dos mesmos que assumem natureza ácida que os torna mais corrosivos e penetrante. (Idem. P 215).

A partir de então variadas análises foram desenvolvidas, entre elas destaca-se a análise de Meckel que observou mudanças físicas no cérebro dos loucos, como a secura ou rigidez do cérebro dos maníacos e o pesadume e a umidade dos melancólicos. Nesse momento é interessante observar que as causas passam a ser procuradas na própria estrutura cerebral, colocando corpo e alma numa ordem de vizinhança e sucessão.

Esse tipo de análise foi usado de forma mais completa por Morgagni e Cullen. Para ambos o cérebro era um espaço causal diferenciado que desenvolve suas estruturas anatômicas e fisiológicas, determinando formas variadas de loucura. Cullen sistematizou essas diferenças e fez das diversas partes do cérebro o aspecto principal das perturbações orgânicas da loucura. (Idem. P 220-221).

No entanto, enquanto as análises das causas próximas evoluíam, as chamadas causas distantes adquiriam uma aparência retrograda nesse mesmo período. Ettmüller enumerou algumas das causas das convulsões: a cólica nefrítica, os humores ácidos da melancolia, o nascimento durante um eclipse da lua, a vizinhança das minas de metal, a cólera das amas-de-leite, os frutos de outono, a constipação, os caroços de nêspera no reto, e de modo mais imediato, as paixões, sobretudo as do amor. Tudo que aguçasse a imaginação: o ar, o clima, a leitura de um romance, espetáculos de teatro, etc. (Idem. P 222).

Outro tema que ocupou a mentalidade do século XVI foi o lunatismo sendo aos poucos esquecido durante o século XVII, voltando a figurar na discussão no final do século XVIII, devido à influência da medicina inglesa, completamente transformada, assumindo significados que antes não possuía. Explicava-se o lunatismo por ser o sistema nervoso sensível às mudanças atmosféricas, o que o deixava vulnerável às forças da lua. No final do séc. XVIII o lunatismo estava novamente a salvo de contestações, porém havia perdido a expressão de poder cósmico.

Nessa época a medicina afirmava que a loucura era: “fenômeno da alma provocado por um acidente ou uma perturbação do corpo; fenômeno do ser humano em sua totalidade – alma e corpo ligados numa mesma sensibilidade – determinado por uma variação das influências que o meio exerce sobre ele”. (FOUCAULT, 1999. p 225).

Apesar de estar figurada entre as causas distantes, a paixão é esboçada por Sauvages como a causa mais constante, mais obstinada e mais merecida da loucura. Sauvages mostra que a alma e o corpo estão num intenso relacionamento metafórico, constituindo assim a paixão condição e possibilidade da loucura.

Foucault conclui que na loucura clássica há dois tipos de delírio: o que se manifesta claramente através de atos e palavras e o que não é perceptível aos outros, pois surge do trabalho interno do espírito. Assim o discurso abarca todo o domínio da loucura. O desatino é a condição necessária para que uma doença seja chamada de loucura.




LOUCURA: FORMAS E TRATAMENTO
Márcia Roberta.


Na Idade Clássica, Século XVII e XVIII, as formas de tratamento dispensadas aos alienados eram das mais curiosas. As enfermidades eram tratadas com medicamentos extraídos da própria natureza, pois se acreditava que os antídotos para as enfermidades estavam inseridos no meio natural. Era só procurar que o remédio seria encontrado. Muitas vezes se poderia pensar que não existisse, mas estava lá, mesmo que fosse aos lugares mais longes, bastava apenas buscar e encontrar. Dentre tantos medicamentos quatro são despertam o interesse e a curiosidade, são eles: o ópio, as pedras preciosas, o corpo humano e o sangue humano.

O ópio foi muito utilizado nos tratamentos e, principalmente, nas “doenças da cabeça”. Essa substância era empregada nos males dos nervos cortando a sua sensibilidade, ou seja, seu principio ativo, digamos assim, era a insensibilidade. Era como se o ópio desativasse o botão responsável e que dava a percepção, aos nervos, do sentir. Ele era útil para todo tipo de convulsões, sendo empregado com muito sucesso, contra a fraqueza, o cansaço, bocejos, em casos de “cólicas ventosas” (gases presos) e de obstrução dos pulmões.

Na verdade, o ópio era visto como um obstáculo à proliferação dos males da sensibilidade, o único problema verificado foi que seu efeito passava rapidamente, permitindo o nervo voltar a “sentir”. A solução encontrada foi aumentar a dosagem, de tempos em tempos, para se chegar ao controle da sensibilidade.

O ópio conseguia esse efeito porque os elementos que o compunha se ligavam, quando dentro do organismo, aos elementos que determinavam a saúde em seu estado normal. Assim, o ópio recebeu o valor de medicamento universal, pois a eliminação dos sintomas era obtida graças a sua virtude natural, ou seja, o ópio atuaria segundo uma mecânica natural recebendo um dom secreto da natureza.

Quanto às pedras preciosas, estas eram vistas como fonte de proteção para quem as usasse nos dedos, em forma de anel. Assim ela estaria protegendo do mal caduco, além de possuir uma propriedade de fortificar a memória, fazer com que as pessoas resistissem à concupiscência, ou seja, resistir á cobiça e ao apetite sexual excessivo isso tudo só seria obtido se usada no dedo.

O corpo humano, nesse período, era denominado como um dos remédios privilegiados contra a insanidade; entedia-se que a sabedoria natural escondera os segredos que poderiam combater o que a loucura humana inventou de desordem e fantasmas. Entre as partes recomendadas a serem usadas como remédios encontram-se os cabelos dos homens, indicados para tratar os vapores emanados pelo corpo dos doentes, mas a eliminação dos sintomas só seria alcançada se os cabelos fossem queimados e inalados no mesmo momento. Do corpo humano ainda poderia se empregar a urina, recém-expelida, para os vapores histéricos.

As mulheres também contribuíram para o fornecimento de medicamentos contra os sintomas que desencadeavam a loucura. Delas, o leite materno era extraído e usado para doenças nervosas, e sua urina era aproveitada para o tratamento dos hipocondríacos.

Mas foram as convulsões, como a epilepsia, que atraíram o poder curativo dos remédios humanos, sendo o crânio, a parte mais valiosa de todo corpo humano, empregado na cura desse distúrbio. Como a convulsão era algo bastante violento, ela só poderia ser combatida com outra brutalidade e foi essa a razão para se usar o crânio dos enforcados e mortos por mãos humanas. A única restrição era que os cadáveres não houvessem sido sepultados em terra santa. Era freqüente, também, o uso de pó de crânio que, para muitos não tinha nenhuma serventia, pois não passava de uma “doença morta” e sem virtude. Em seu lugar era melhor utilizar o cérebro ou o crânio de um homem jovem e que tivesse sido morto recentemente, mas a morte deveria ter sido violenta isso era o primordial.

Mas não só o crânio foi usado para o tratamento das convulsões, o sangue humano era outro componente muito útil. A única advertência era para que esse remédio não fosse muito empregado porque o seu uso em excesso poderia levar a doença da mania.
Foi em fins da Idade Clássica que surgiu à busca pela cura definitiva. Antes a doença era combatida apenas em seus sintomas, sendo que neste novo momento a cura passa a ser vista como uma maneira de eliminar a doença no seu todo. E foi nesse contexto da procura pela cura que surgiram as ideais terapêuticas ou práticas terapêuticas.

Entre estas práticas utilizadas está a Imersão, que tinha na água seu principal elemento de cura, pois ela era vista como um líquido que representava o que de mais puro existia na natureza e era símbolo da reconstituição do equilíbrio de cada um. Essa cura era alcançada através dos banhos forçados, nos quais os doentes eram obrigados a mergulhar no mar ou na água doce para sanar as patologias como frenesi, mania, melancolia e imbecilidade. Para o caso do frenesi e da mania deveriam ser adicionados banhos de duchas.

O tratamento consistia em mergulhar o doente, repentinamente, deixando-o na água por bastante tempo, sem preocupação ou respeito pela vida do enfermo. Essa técnica foi aperfeiçoada no final do Século XVIII e inicio do Século XIX com o advento dos banhos surpresas; nesses o paciente era levado a uma sala quadrada que possuía uma banheira onde ele era empurrado, essa surpresa e violência eram necessárias, pois se acreditava que esta era a promessa de um novo batismo.

Outra prática terapêutica muito empregada foi a realização teatral. Era o chamado teatro da loucura, onde a intervenção terapêutica aplicada estava no espaço da imaginação. Era necessário delirar na mesma linha do delírio a que o paciente estava inserido e se chegar à cura, ou seja, a imaginação do doente só poderia ser curada através de uma imaginação sadia.




A CAMINHO DA INTERNAÇÃO.
Marcelo Renan.



A loucura, assim como foi apresentada, transforma-se na nova chaga social da Europa em meados do século XVI até início do XIX merecendo uma atenção diferenciada por parte da medicina e dos governantes da Idade Moderna.

Os loucos, ou pelo menos aqueles que assim eram apresentados, igualmente receberam tratamentos mais “adequados” para a sua patologia, que, por sua vez, era completamente contraditória no que diz respeito ao diagnóstico feito ao paciente. A partir de então eles começam a ser encaminhado para locais específicos onde pudessem ser tratados, locais estes que surgem como o embrião dos conhecidos manicômios.


Durante grande parte da Era Clássica a loucura começou a ser rechaçada pela sociedade que via na figura do louco um estorvo, uma nova praga que viria a contaminar e a estragar as comunidades afetadas, no caso as que possuíssem criaturas acusadas de possuir tal patologia.

Diferentemente da cultura européia do final da Idade Média que permitia ao louco conviver pacificamente e participar dos ritos cotidianos da comunidade, agora, no mundo moderno, o louco deveria ser afastado do convívio dos sãos. Esse afastamento não era apenas das práticas comuns (como por exemplo, as religiosas como ir à igreja, muito embora lhe fosse permitido ser religioso), mas sim da comunidade como um todo. O louco, neste período, sofre segundo arbitrários diagnósticos que caracterizavam a doença de acordo com os mais controversos sintomas. O que merece mais destaque e que serve de argumento para tantas internações, que serão melhor explicas mais adiante, é a mendicância.

Parece um tanto estranho reconhecer em um problema de ordem social uma doença mental, ou da alma como se acreditava, e que isso ocorresse de maneira tão generalizada. Acontece que com o desenvolvimento das cidades, das manufaturas que acabariam conduzindo a futura industrialização, e com uma mudança profunda nas mentalidades dos europeus, em especial os que aderiam às doutrinas protestantes, e que viam o trabalho como fator que dignificava o homem, a mendicância passa a ser vista como sintoma da insubordinação do homem as ordens religiosa e social. Ela passa a ser tratada como fator de desordem, além de que, o louco em sua des-razão, representava agora uma ameaça aos demais. Por estes e outros motivos os inaptos ao trabalho acabavam por ser acusados como loucos, da mesma forma que os mendicantes também passaram a receber este tratamento.

Diante deste contexto o louco passa a ser completamente indesejado, sendo a loucura comparada à lepra, que assolou grande parte da Idade Média, e assim como tal deve ser rechaçada para lugares distantes das cidades. Em decorrência destes fatores se inicia um verdadeiro movimento de banimento destes loucos para longe de seu local de origem. As cidades os entregavam nas mãos de mercadores, viajantes e principalmente de marinheiros, para que fossem conduzidos a um destino incerto: podendo eles morrerem nas viagens, se perderem ou aportarem em cidades desconhecidas que agora se encarregariam de “cuidar” deste louco, mais pelo fato do mesmo ser estrangeiro do que por sua doença ou estado de espírito.

Com este movimento de banimento surge o que alguns chamariam de Naus dos Loucos ou Nau dos Insanos. onsistia em um tipo de embarcação que possuía como principal finalidade embarcar estes loucos nestas viagens, carregadas não apenas do sentido estratégico de afastar o problema das cidades, mas também de todo um simbolismo e finalidade terapêutica.

Acreditava-se que água possuía propriedades terapêuticas e relaxantes, e que se não pudesse curar estes loucos pelo menos os deixariam mais calmos e que em uma viagem marítima eles teriam oportunidade de refletir sobre seus problemas e acalentar seus pensamentos. Por outro lado o mar, que por si só já é cheio de simbolismos, representava as constantes incertezas dos homens em relação à navegação. Se a viagem será bem sucedida, se sobreviverão os navegantes, em que porto há de chegar esta embarcação etc.. E este jogo de incertezas era transmitido aos que acreditavam na Nau, representando também para o louco todas estas incertezas que recaíam sobre si, em relação à cura e à sua vida.

Os simbolismos também passam a existir em relação às artes, em especial na literatura e na iconografia. Começam agora a ser escritas obras literárias que tratam da loucura. A pintura também retrata a figura do louco, assim como as gravuras adotam a loucura como temática central. A morte, que no medievo era tão temida, e que era utilizada para expressar valores religiosos, perde esse seu lugar em benefício da loucura. A loucura agora expressa às vicissitudes do homem e o conduz às suas fraquezas, sendo condenável aos olhos de Deus.

No entanto, mesmo com a existência dessas Naus, as cidades não deixaram de necessitar de locais específicos para receber e condicionar estes loucos, próprios ou estrangeiros, e é neste contexto que reaparecem os medievais leprosários. Tais locais até o início da Era Moderna abrigavam os leprosos, afastando-os da população caíram gradativamente em desuso uma vez que houve uma significante redução da incidência de lepra nos países europeus, passando a abrigar números cada vez menores de doentes, chegando a passar longos anos com números oscilantes entre dois a nenhum paciente.

Buscando o aproveitamento destes locais eles são transformados em centros hospitalares destinados a tratar as doenças venéreas, que também assolam o período, recebendo também estes loucos que passam a ser mais numerosos do que os infectados por estas doenças. Visando a diferenciação entre esses doentes e os loucos, estes começam a ser encaminhados unicamente para os hospitais, ficando os leprosários encarregados de receber e condicionar estes loucos, mendigos, inválidos etc.
Esta nova utilidade conferida aos leprosários acaba conduzindo ao enclausuramento do louco na Idade Clássica. Na França em 1656 um edito coloca sob uma única administração os hospitais e leprosários de grande parte de seu território criando o Hospital Geral, que receberia, em cada uma dessas unidades, doentes com variadas doenças além dos loucos, que por vezes eram encaminhados para unidades específicas. Vale lembrar que desde o século XVI os mendigos eram aproveitados para trabalhar nos esgotos de Paris.

Desde essa época a internação passa a ser adotada como medida principal em relação ao tratamento da loucura. Neste caso ela era aplicada não apenas com finalidades médicas, mas essencialmente corretiva destes miseráveis que eram encaminhados a estes locais. Vale lembrar que os miseráveis (pobres desempregados, mendigos, inválidos, etc.), deveriam ser encaminhados para estes locais para que fossem aplicadas a eles medidas corretivas e de “re-socialização”. No entanto com estas medidas se percebe o caráter arbitrário das internações.

Aos pobres restava a oportunidade de aceitar a idéia da internação pacificamente e de que encontrariam melhores condições nas casas de internações do que nas ruas. Aos que se negassem ao recolhimento cabia a aplicação de severas punições, entre elas ser espancado publicamente como forma de coagir pela força aos que insistiam em viver nas ruas e a conseqüente e forçada internação. Estes pobres eram caracterizados segundo o seu comportamento em bons pobres e maus pobres, respectivamente os que aceitavam a internação e os que faziam objeções a reclusão.
As casas de internação, conhecidas também como Casas de Correção (a exemplo da Inglaterra em 1575), possuíam antes um caráter repressivo e judiciário do que médico, e neste contexto, atravessando uma linha evolutiva elas se difundem pela Europa mobilizada e sensibilizada por esta nova ordem sócio-econômica. Era a função de a polícia aplicar estas medidas repressivas, segundo complexos acordos entre as partes envolvidas e responsáveis pela ordem social.

O miserável passa a ser considerado a ralé da república, e mesmo a igreja católica – quando não se refere à Inglaterra - aceita o tratamento coletivo despojando os princípios da caridade individual. Passa a aceitar ainda que contraditoriamente elementos protestantes em relação ao enfrentamento desta chaga social, encarando o problema com sensibilidade moral, e não religiosa. As casas de internações podiam ser mantidas tanto pelo governo, através de impostos e tributos, pela igreja e por sociedades leigas que buscavam fazer a caridade.

Seguindo a esta onda das casas de internação a Europa começa um movimento que busca alternativas para o desemprego e para aproveitar estes reclusos das casas de internação, para isto eles começam a ser aproveitados em serviços que beneficiassem de alguma forma o Estado, sendo aproveitados em serviços públicos, em mutirões etc. Algumas destas casas possuíam verdadeiras manufaturas, onde se beneficiavam principalmente lã, cereais, onde se tecia, cultivavam hortaliças etc. As maiores constatações destas casas de trabalho encontram-se na Alemanha e Inglaterra, onde são conhecidas como Workhouses já no século XVII.

Ao mesmo tempo em que era oferecida uma oportunidade do interno de aprender um oficio, era fornecida mão de obra barata para atividades lucrativas. Por vezes, a ética deixava de existir nestas casas, permitindo que terceiros aproveitassem a mão de obra das workhouses, fornecendo matéria prima necessária para a gestão da casa e em troca receber algum produto já beneficiado. Isso ocorria freqüentemente com a indústria lanífera que, em troca de uma parte de lã ou outros produtos, o fornecedor recebia a lã já fiada ou já tecida.

Passando pelos leprosários, casa de internação e correção até chegar às workhouses, a sociedade européia dos séculos XVI até o XVIII enfrentou o medo presente causado pela idéia da existência destes locais assombrosos, que ocupavam não apenas o espaço geográfico, mas também o imaginário da população. A postura repressiva e arbitrária destas instituições e suas finalidades controversas, além das variadas formas de tratamento do louco (trabalhados em outra parte do presente trabalho), colocavam o homem diante de um ajuste de comportamento forçado principalmente pela coerção.

O asilo ou Madhouses, que se tornará nos hospícios do século XIX, já com Philipe Pinel, é visto desta forma até passar por sérias reformas principalmente das mentalidades. Reformas que permitem um olhar mais detalhado por parte da medicina e um tratamento mais adequado ao portador de perturbações mentais (loucos, lunáticos etc.), e que finalmente encontram um lugar onde lhe é destinado conforto o tratamento segundo condições mais humanas. No entanto esta nova estrutura dos manicômios que é levada até o século XX é alheia à encontrada na era clássica, e consequentemente a este trabalho, merecendo um outro estudo.




CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Esta breve pesquisa nos mostra quão vasta é a história e seus problemas. Estudar a história da loucura é um exercício de cidadania, de como compreender a situação atual dos deficientes mentais e saber como a sociedade criou e proporcionou as mais diversas maneiras de lidar e cuidar desses indivíduos. Sob várias perspectivas podemos lançar um olhar investigativo sobre esse tema. Analisando socialmente vemos que inseridos em uma sociedade capitalista foram adotadas medidas que garantissem a preservação dos parâmetros sociais vigentes e o crescimento econômico, uma vez que a principio os “loucos”, visto que nem todos possuíam realmente alguma patologia do tipo, foram usados como mão-de-obra barata nas workhouses e foram também retirados das ruas na tentativa de higienizar as cidades que eram palco da burguesia crescente.

Em suma, podemos ver que ainda há muito a ser feito pelos historiadores, uma vez que sua função não é apenas “contar histórias”, mas antes disso mostrar a sociedade quais as razões que as levaram à determinados comportamentos e, acima disso, fazê-las compreender que mudanças são possíveis, que humanizar-se é o meio primordial de construir uma sociedade melhor. Esta é a importância da continuidade deste breve trabalho.










BIBLIOGRAFIA:

FOUCALT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, 6ª ed. Perspectiva, 1999.
PESSOTI, Isaias. Os nomes da loucura. São Paulo, 1ª ed. Editora 34, 1999.
PESSOTI, Isaias. O século dos manicômios. São Paulo, 1ª ed. Editora 34, 1996

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

ESTRUTURA E DINÂMICA DA CORTE FRANCESA MODERNA

Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
Disciplina: História Moderna II
Professor: Severino Vicente da Slva

Alunos: Ítalo Almeida
João Vinícius
Raimundo Ferreira














ESTRUTURA E DINÂMICA DA CORTE FRANCESA MODERNA





Recife, outubro de 2008




Sumário
I - Prefácio.............................................................3
II - A sociedade de corte no processo civilizador..............................................................4
III - Deslocamentos sociais de poder na sociedade de corte francesa......8
IV- Comportamento e mentalidade dos homens na sociedade de corte........11
V - Rei, prisioneiro da etiqueta................................................................15
VI - Sociogênese da revolução...........................................18
VII - Referências Bibliográficas..........................................................22


Estrutura e Dinâmica da Corte Francesa Moderna


Prefácio
Por: Ítalo Almeida

Abordaremos ao longo dessa exposição, baseando-nos principalmente no pensamento do Alemão Nobert Elias, estudar não um rei em particular, mas a sua função de rei; não a ação de um príncipe, mas as redes de pressões na qual ele está inscrito. Trataremos da corte francesa de Luís XIV, o Rei-Sol, que se tornou modelo para toda a Europa. Levando em consideração a estrutura e a dinâmica dessa sociedade, tomando por base os elementos da lógica do prestígio social e suas ressonâncias na nova ótica social que está se estabelecendo com a ascensão da nova classe burguesa.

Os movimentos e articulações da complexa e delicada interdependência que se estabelecia entre o rei, a nobreza e a burguesia e na medida do possível, observar conexões que nossa sociedade tenha herdado e perpetuado até nossos dias desse contexto.

Faremos uma abordagem diferente da que se daria na Escola dos Annales, não é de nosso interesse privilegiar a História da vida privada. Uma vez que focaremos na estrutura e não no indivíduo, fenômenos que mesmo a vontade do príncipe não alteraria o contexto.




A Sociedade de Corte no Processo Civilizador


Por: Ítalo Almeida


Talvez transite no inconsciente coletivo comum, a corte como um lugar de ostentação de uma vida coletiva, ritualizada pela etiqueta, inscrita no fausto monárquico. O objetivo aqui é atentar para o duplo sentido do termo, ou seja, por um lado, a corte deve ser considerada como uma sociedade, isto é uma formação social na qual são definidas de maneira específica as relações existentes entre os sujeitos sociais e em que as dependências recíprocas que ligam os indivíduos uns aos outros, gerando códigos e comportamentos originais. Em contrapartida, a sociedade de corte deve ser entendida no sentido de sociedade dotada de uma corte, real ou principesca e inteiramente organizada a partir dela, constituindo assim, uma forma particular de sociedade.

Antes que entremos diretamente no processo civilizador no qual a corte exercia sobre seus partícipes, é válido chamar atenção para alguns pontos que serão mais esclarecidos ao longo do trabalho, aqui de forma genérica faremos um rápido sobrevôo nessa possível questão: Como o rei conseguiu atrair em torno dele a nobreza e estender tão fortemente sua influência sobre estes? Ao longo da formação do Estado Moderno, os direitos jurisdicionais pertencentes ao mundo feudal foram sendo incorporados ao aparato estatal. A priori, no momento em que o rei consegue estabelecer-se sobre os nobres mais próximos, achatando as condições destes em torno da sua figura, aos poucos ele recomeça a retomar sobre si seus poderes e influência que foram fragmentados com o Estado Feudal, com a ajuda de alguns nobres e da incipiente burguesia.

No início do século XVI, ocorre uma “refeudalização”1 que gera a Nobreza de Toga. Diferentemente na nobreza feudal, esta detém muito mais o poder administrativo do que militar. O rei, agora como um estrategista, estará mais preocupado com o serviço especializado que lhe será prestado do que com a origem social de quem o presta. Criando inicialmente espaço para uma ascensão social, que outrora na era feudal era praticamente impossível e ao mesmo tempo uma não satisfação dos nobres tradicionais, dando a gênese das articulações que o rei vai manobrar para cada vez mais consagrar-se como soberano.

Tendo iniciado essa lógica, observaremos as ressonâncias entre as partes da sociedade de corte francesa de Luís XIV. A corte foi a estrutura central tanto na constituição do Estado Absolutista quanto do processo civilizador que transformou radicalmente a psicologia do homem ocidental na modernidade. O rei precisaria atrair sobre si não só o poder como também o carisma social, pois a importância da autoridade e da iniciativa individual do líder, não dispõe de nenhum aparelho de dominação fora de seu grupo, está ai a importância do poder manipulativo do rei, permear entre estes meandros e inicialmente barganhar e depois impor sua influência de forma não tão explícita, mas que demonstre sua autoridade.

Na corte o rei trata das noções de figuração, interdependência, equilíbrio de tensões, evolução social e do desenvolvimento das figurações. Isso responde possíveis inquietações sobre o porquê que os indivíduos estão ligados entre si constituindo figurações dinâmicas e específicas? Por partes veremos as inter-relações e significados assumidos aqui pelos conceitos postos no início deste parágrafo. Figuração: formação social cujas dimensões são variáveis como jogadores de um carteado, a sociedade de um café, uma classe escolar, uma aldeia, uma cidade, uma nação. Os indivíduos estão ligados por interdependências e a reprodução supõe um equilíbrio móvel entre as tensões, na verdade, sua liberdade depende dos outros, limitando o que decidir e fazer. A imagem que pode representar estas relações em cadeia é o jogo de xadrez: “...como em um jogo de xadrez, cada ação decidida de maneira relativamente independente por um indivíduo representa um movimento no tabuleiro social, jogada que por sua vez acarreta um movimento de outro indivíduo – ou, na realidade, de muitos outros indivíduos...” 2

Estabeleceu-se um equilíbrio de tensões, como já colocamos, nos primórdios da sociedade de corte, resultante da ruptura das relações feudais; foi esta ruptura que remodelou toda a organização social a partir da proeminência conquistadas pelos reis, este que se tornou absoluto à custas de seus concorrentes: a nobreza e a burguesia.

A figuração da sociedade de corte está intrinsecamente ligada à construção do Estado Absolutista, no duplo monopólio do soberano. Primeiro o monopólio fiscal, o rei centraliza os impostos e dá ao príncipe a possibilidade de retribuir em dinheiro, não mais em terras, seus fiéis e servidores sobre a violência. Segundo, o rei, detentor da força militar, senhor e avalista de todo o espaço social, despoja a aristocracia dos antigos fundamentos de poder, obrigando-os a viver na proximidade do soberano dispensador de rendas, pensões e gratificações.

A afirmação do rei absoluto sufoca as diversas unidades de dominação de um determinado espaço. A hegemonia de um soberano na sociedade elimina, progressivamente, os concorrentes em potencial, reduzindo-os a situação de dependentes. Tomemos o exemplo da França, entre os séculos XI e XVI: a livre competição reduziu progressivamente o número de pretendentes a soberania, no início do século XIV, estes grupos eram apenas em cinco, com os reis da França e da Inglaterra, os duques da Borgonha e da Bretanha e o conde de Flandres.

A consolidação do poder pelos Capetos, em seguida pelos Valois e que atingirá seu clímax com os Bourbons. Em princípio, a concorrência se dará dentro da própria casa real: o rei x seus parentes. Em seguida sobrepujando seu rival inglês e reduzindo os concorrentes familiares, o rei da França estabelece sua dominação político-territorial desde o início do século XVI.

A medida que subjuga seus concorrentes externos e internos a unidade de dominação é tornada hegemônica, dando-se a partir do interior, com o rei exercendo o monopólio da dominação.

Na França, entre a aristocracia e o judiciário o equilíbrio de tensões é tal que fomentava não só o estabelecimento como a manutenção do poder absoluto real. Eram interdependentes e rivais a tal ponto que se fez impossível uma aliança contra o soberano. Assim, o rei é, portanto, mais forte do que cada um dos grupos tomados isoladamente.

Esse processo reforça o poder de uma burguesia burocrática e administrativa ao lado do rei. Seu monopólio de dominação que se faz entre as tensões aristocracia x burguesia gera este entrave: a vontade real é de proteger-se e ao mesmo tempo controlar a aristocracia contra o poder burocrático. Para fazer isso, a corte se torna a instituição essencial, de um lado, a vigilância pela proximidade, pelo outro, os jogos de favores monárquicos, criando uma esfera de reprodução de tensões. O monopólio fiscal, militar e a etiqueta de corte são, portanto, três instrumentos de dominação, conjuntamente definem essa forma social e original que é a sociedade de corte.

Não devemos compreender estas relações exclusivamente como lutas de classes, mesmo que ambos, aristocracia e burguesia, estejam sempre na busca por privilégios, o rei não é dependente diretamente de um grupo social, mas da manipulação das tensões, a origem de seu poder.

Entre os séculos XII e XVII, as diferenciações das funções sociais, multiplicaram a interdependência das classes, suscitando os mecanismos de autocontrole individual que caracterizou o homem ocidental da Modernidade. A corte serviu como um laboratório de comportamentos inéditos e lugar de elaboração de novas dinâmicas sociais, convenções mais coercitivas, controle dos impulsos e paixões, domínio mais rígido das condutas, relação menos brutal entre os homens e as mulheres, diferindo fortemente neste ponto da corte do medievo.

Paradoxos na corte absolutista como a maior distância na amplitude social, ao mesmo tempo, na maior proximidade espacial do rei, gera traços fundamentais e originais dessa sociedade, quando muitas vezes a grande confusão é entre a vida pública e privada que se misturam de tal forma a favorecer ainda mais a dominação real, atando os homens pela etiqueta. Não estamos afirmando que o rei está isento da etiqueta muito pelo contrário, entretanto sua manipulação dentro de seus limites em muito o favorecia com relação aos nobres e burgueses.

Além disso, a representação do indivíduo é essencial; na corte você é o que parece, gerando ostentação. Uma das exigências da posição que se pretende montar é como já tratamos, a hierarquia da etiqueta como modelo das diferenças sociais. Diferentes papéis e lugares no cerimonial de corte corroborando para a condição essencial da competição social, onde o rei como o senhor do tabuleiro, mexe as peças de acordo com sua necessidade. Sua representação está mais ligada a credibilidade dada ou recusada pelos outros do que a própria representação.

Superior socialmente pela submissão política. Aceitando a domesticação pelo soberano e a sujeição às formalidades coercitivas da etiqueta de corte, separando-se por este canal de sua concorrente a burguesia, assim fazia-se a nobreza. Observamos que para participar da sociedade de corte, o indivíduo precisa passar por uma transformação não apenas social, mas também psicológica para sobreviver e barganhar seus privilégios dentro de uma sociedade onde a instabilidade e estabilidade se misturam de tal forma, onde a centrífuga é naturalmente inconstância.



Deslocamentos sociais de poder na sociedade de corte francesa

Por: Raimundo Ferreira

A nobreza que anteriormente encontrava-se por todo o país espalhada vai originar à nobreza de corte reunida ao redor do rei tornando-o centro e poder determinante. A maior parte dos nobres passou de cavaleiros a seigneurs e grands seigneurs da corte, e também o rei passou por transformações. Exemplo de rei cavaleiro, Francisco I que amava os torneios, as caçadas, para ele a guerra era um jogo cavaleiresco, no qual, como o mais corajoso chevalier valia a pena arriscar a vida. Antes cavaleiresco, Henrique IV ao subir ao trono incorporou o tipo rei aristocrático de corte, que foi representado na sua plenitude por Luís XIV. Ao contrário de Henrique IV, ele não segue mais para a batalha à frente de seus nobres, como cavaleiro, desta feita manda seus generais para a guerra com tropas que recebiam soldo. O rei já perdera o costume aos esforços físicos e às atividades no campo de batalha.

Ao longo do século XVI ocorreram mudanças nas estruturas sociais do Ocidente, elas podem ter sido tão importantes quanto as do final do século XVIII. A oferta de metais preciosos originários das terras ultramarinas e o aumento na circulação de bens, espalhando-se por todos os países do Ocidente, apesar de variadas formas, não foi sozinha a causadora das revoluções deste século. No entanto, isso não seria possível se não houvesse na Europa a necessidade e os meios para aproveitá-los.

O aumento da circulação de dinheiro provocou uma inflação exorbitante. Houve uma desvalorização na moeda, na proporção de quatro para um. Com isso, os preços subiram na proporção inversa. O solo e a terra, embora fossem a base de todos os recursos, as pessoas guardavam uma grande quantidade de dinheiro em casa. A inflação provocou um grande abalo na vida dos franceses, os nobres viviam de rendimentos fixos da terra. A elevação dos preços fez com que os rendimentos da nobreza não cobrissem seus gastos. Com a maior parte dos nobres mergulhados em dívidas, após as guerras religiosas, muitas vezes tiveram as terras tomadas pelos credores. Os nobres que perderam as terras buscaram na corte uma vida nova.
O único nobre cuja base econômica, posição de poder e distância social não sofreram reduções, foram sim aumentadas, foi o rei. Há muito tempo sua fonte de renda deixou de ser os produtos das propriedades e passou a ser os impostos ou tributos similares, recolhidos de seus súditos. O rei deixou de distribuir terras e passou a distribuir dinheiro. Ao contrário dos últimos reis do século XVI, a realeza de corte dos séculos XVII e XVIII, economicamente falando é sustentada pelos rendimentos financeiros. Esses rendimentos dos reis eram diferentes dos rendimentos dos comerciantes e dos artesãos, pois não resultavam de um trabalho ou atividade profissional. Mas da renda do trabalho das camadas profissionais através da atividade de funcionários remunerados, os quais tinham suas atividades controladas e coordenadas pelo rei, podendo aumentar seus recursos financeiros sem precisar de uma atividade profissional, apenas com base no enriquecimento do país governado por ele.
A mudança na prática da guerra teve, também, grande influência no destino dos nobres. A nobreza medieval equilibrava as tensões entre ela e os príncipes suseranos, visto que, quando se tratava de guerras eles dependiam de seus nobres. Cabia aos nobres arcar com a maior parte das despesas bélicas – armaduras, cavalos e armas – não importando se o financiamento vinha do lucro da propriedade ou das pilhagens. Se desobedecesse o chamado para os campos de batalha ou desertar-se do exército antes do período determinado e para suas terras, vilas ou cortes retornar-se, podia ser punido por uma expedição comandada por um suserano à frente de uma tropa numerosa de guerreiros e forçado a permanecer na frente de batalha.
Nos exércitos franceses do século XVI misturavam-se elementos os mais diversos. Apenas em casos de necessidade, e sem muito proveito ou êxito militar, fazia-se a convocação da nobreza feudal. Na verdade, o antigo exército feudal estava desfeito. Os nobres em condições de guerrear incorporavam-se às companhias de cavalaria pesada, as companhias de ordenança, que formavam a gendarmerie: os gendarmes forneciam seus próprios cavalos e os equipamentos mais valiosos; os menos abastados eram incluídos nessas companhias como guardas montados ... Nos ataques pesados de cavalaria, mas também nos serviços pessoais, esses guerreiros, que tinham uma formação baseada na honra, eram indispensáveis aos generais. Mas o futuro não pertencia mais a esse tipo de arma. Separada dessa cavalaria, muito abaixo dela em termos de nível social, desenvolvia-se uma cavalaria leve, que se baseava cada vez mais no uso de armas de fogo ... Toda a organização do exército estava fundada no soldo. 3

No processo de disputa entre a maioria da nobreza guerreira e o príncipe suserano quanto à prática da guerra, ele acabou levando vantagem. A disponibilidade de recursos financeiros proporcionou-lhe a contratação de tropas para lutar a seu favor, equipando exércitos recrutados nas camadas inferiores liderados por comandantes de tropas. O desenvolvimento das armas de fogo facilitou o recrutamento dessas camadas inferiores em detrimento das camadas superiores. Visto que as armas de tiros mais antigas eram tradicionais de camponeses ou de tropas que não pertenciam a nobreza, elas serviam de auxílio nas batalhas de cavalaria, dado o fato que as armaduras de cavaleiros e cavalos limitavam o efeito das flechas disparadas. As armaduras não resistiam mais as novas armas desenvolvidas o que provocou a decadência da antiga nobreza guerreira e aos príncipes a guerra com exércitos de mercenários.

Ao contrário do período anterior, no qual a sociedade tinha pouco comércio e conseqüentemente menos moeda, fazendo-se o pagamento com a doação de feudos, agora a remuneração dos serviços militares era feita com o pagamento em moeda. A possibilidade da contratação de mercenários ou soldados pelos príncipes, diminuiu a dependência dos mesmos para com a nobreza feudal.

O mesmo não pode ser aplicado com relação às questões financeiras que se tornavam cada vez maiores. Enquanto a guerra baseada em exércitos de soldados com armas de fogo ganhava importância, a guerra tradicional de cavaleiros era desvalorizada. Esse fator diminuía a dependência do soberano quanto à nobreza e produzia o inverso. Enquanto valorizava-se a guerra baseada em exércitos de soldados com armas de fogo, a guerra tradicional de cavaleiros perdia seu valor. Surgem, dessa forma, relações de dependência, nas quais, o desenvolvimento do comércio é favorecido pelo aumento da proteção nas suas vias e à garantia legal do seu direito, pelo Estado, o qual, representado na figura do rei, não teria um rendimento regular oriundo do pagamento de impostos, com tropas insuficientes, por sua vez os rendimentos permitiam financiar exércitos com poderes ao nível das necessidades.

São fatores que aumentavam a dependência da nobreza em relação ao soberano e o deixavam cada vez mais, menos dependente dela.


Comportamento e mentalidade dos homens na sociedade de corte

Por: João Vinícius


A partir de agora, na leitura deste trabalho, é preciso ter em mente que estamos tratando de um Estado Absolutista consolidado, onde as relações na corte estão num grau de complexidade elevado. A maioria dos exemplos e das reflexões que serão expostas se refere à França Absolutista do século XVIII, especialmente sob o reinado de Luís XIV. Tentaremos expor como esta realidade não pode ser compreendida se não forem feitas as devidas contextualizações. Nossas prioridades hoje, no que se refere ao que nos é importante, foi em grande parte formada pela burguesia dita “iluminista” que conseguiu impor seu projeto de sociedade ao antigo projeto do Ancien Régime, ridicularizando em muito aquilo que no projeto anterior era a prioridade. O ethos ou o status burguês está muito preocupado com as nuances financeiras, com o dinheiro. Já o ethos aristocrata de corte, do século XVIII, está preocupado com as nuances de comportamento, sua prioridade é zelar por uma honra difícil de ser compreendida a partir dos paradigmas atuais, pois as chances de prestígio era o fim a ser buscado e não o acumulo de riqueza.

Depois das guerras religiosas, que ocorreram na segunda metade do século XVI, as finanças da França se estabilizaram durante algum tempo. Daí as grandiosas construções palacianas em estilo barroco e classicista, e a formação de um exército profissional francês, vale lembrar que tudo isto foi feito à custa de pesados impostos e da venda de cargos públicos, além da pirataria e do comércio mercantilista. Enfim, o que é importante para iniciar este trabalho é a compreensão que o rei, no início do século XVIII, tinha em torno de si uma corte de nobres que dependia dele para existir e vice-versa.

Esta estrutura é rígida e coerente para os parâmetros da época, e o rei não aprovava a fragmentação dos círculos que constituíam a corte, a vida social deveria ser a própria corte – o exemplo clássico é o do Palácio de Versailles, que em 1744 abrigou cerca de 10 mil pessoas4. No entanto, evitar completamente isto era impossível, já no reinado de Luís XV o centro de gravidade desloca-se dos palácios para os hôtels, residência de aristocratas da corte que não eram príncipes. Com a expansão da corte, por assim dizer, surge um fenômeno conhecido como cultura de salão5.

No que se refere à residência do rei, o sentido abstrato se impõe sobre o sentido prático, ou seja, não bastam dimensões úteis para a habitação, mas o tamanho da casa deve condizer com o prestígio social do nobre que ali habita. Nobert Elias diz que o próprio rei jamais dormiria em um lugar previamente construído segundo um cálculo racional e prático. Mas o quarto teria que ser feito sob encomenda de acordo com o gosto do monarca, e é claro com dimensões gigantescas6. Figurativamente o rei era tanto dono de todo o grandioso palácio como de todo o país, e esta grandiosidade tem de se fazer notar.

Antes de começarmos a falar das mentalidades que sustentavam este modelo de sociedade é preciso dar um exemplo do que era uma das maiores atividades que ocorriam em torno do rei: “Le lever du roi”7.

Todos os dias por volta das oito horas, ou do horário que o rei determinasse, o primeiro criado de quarto, que dormia aos pés da cama do rei, acordava a majestade e abria as portas para os pajens. Os pajens espalhavam a notícia de que o rei tinha acordado, um deles ficava na porta regulando a entrada e a saída de pessoas no quarto. Iniciava-se então, obedecendo uma rígida hierarquia, as seis entrées (entradas) no quarto do rei; vários grupos de nobres autorizados entravam no quarto do rei de acordo com sua hierarquia na corte. Na primeira entrada, ou entrée familière, entravam os filhos legítimos do rei, príncipes de sangue, além do primeiro médico, o primeiro criado de quarto e o primeiro pajem. Na segunda entrada, ou grande entrée, entravam os oficiais do quarto e do guarda-roupa, junto com senhores e nobres que tinham a honra de entrar concedida pelo rei. Esta entrada servia, sobretudo, para vestir o rei, e os nobres tinham o privilégio ou a obrigação de vestir a blusa do rei de acordo com seu nível hierárquico. Nobert Elias conta que certa vez quando a rainha acabara de ser despida por suas damas, a criada de quarto deu a blusa à dama de honra que deveria vesti-la quando entra no quarto a duquesa de Orléans. Então a blusa é passada novamente para a criada de quarto de acordo com o cerimonial para ser entregue à duquesa que deveria vestir a rainha, mas logo em seguida entra no quarto a condessa de Provence. Então a blusa tinha que ser passada novamente para a criada de quarto que deveria entregá-la a condessa que era de um nível hierárquico mais alto. A rainha teve que esperar nua por toda esta cerimônia até ser vestida. Na terceira entrada, ou première entrée, entravam os leitores do rei, intendentes de divertimento e festividades para entreter o rei. Na quarta entrada, ou entrée de la chambre, entravam os ministros, secretários, conselheiros de Estado, oficiais da guarda e marechais. Na quinta entrada senhores e senhoras da nobreza ainda poderiam entrar com o consentimento do pajem e a permissão do rei. A sexta entrada era a mais disputada, não era feita pela porta principal, e por ela vinham os filhos ilegítimos e o superintendente do edifício.

Mas qual era o porquê das pessoas se submeterem a este tipo de comportamento? O próprio Nobert Elias diz que durante o período de reinado de Luís XV os nobres já faziam de muito mal grado estas funções, terminadas esta cerimônia saiam depressa do quarto do rei como uma horda selvagem, no entanto, não as deixavam de fazer.

Entendamos então esta frágil estrutura que tende a se perpetuar, a se congelar, e sofre o mínimo de alterações, mesmo assim é frágil, é tensa. Todas estas funções são cedidas como privilégios pelo rei, ou seja, de uma forma ou de outra o rei tinha que estar muito próximo de todos e tudo o que se passava ao seu redor. Os que recebiam este privilégio por mínimo que fosse – calçar as sandálias do rei, por exemplo – já olhava com desprezo a massa de pessoas que não tinha privilégio algum. No entanto, dentro da própria corte havia um clima de tensão entre todos os nobres, pois eles poderiam ascender ou perder sua função de acordo com a vontade do rei. Daí a frieza e o automatismo das relações, o estilo classista é a representação desta relação fria que não pode ter espaço para a expressão do sentimento. A frieza do olhar também é percebida nas pinturas de nobres da época, até hoje se fala muito da frieza dos franceses em seu cotidiano. Na verdade tudo isto faz parte de um cotidiano em que o outro não pode saber o que você está pensando, qual será seu próximo passo. Como as expressões corporais e faciais dizem muito do que se está sentido, isto tem que ser evitado ao máximo, a sua existência social como nobre depende disto. Até mesmo os espetáculos de teatro da corte não serviam para extravasar ou entreter seus sentimentos, mas servia como mais um encontro de nobres. Comportamento muito diferente tem os comerciantes burgueses, já que no comércio expressar-se extravagantemente é até mesmo uma qualidade à medida que isto chama a atenção dos clientes.

Então o que importava nesta sociedade era o valor de uma pessoa, e não o valor da conta bancária, o próprio dinheiro era um meio para se conseguir se inserir na corte, ele não era um fim, muitas vezes ascender socialmente em algum cargo da corte implicava perda de condições financeiras. O valor de uma pessoa é a medida de sua honra, ao ingressar no círculo dos nobres ela perde parte de suas características pessoais, mas ao mesmo tempo se distingue da imensa massa de pessoas sem privilégios que está fora da corte. Podemos notar que neste contexto, existe ainda uma preocupação muito grande com a opinião coletiva. A um nobre era preferível morrer a ver a honra da família desmoralizada, ou desprezada. A existência do indivíduo não está dissociada da existência do grupo, não valeria a pena viver sem estar inserido em uma rede de privilégios que caracteriza a nobreza. Outro parâmetro de comportamento vai ser trazido pelos burgueses iluministas, e pelos revolucionários, ou seja, do individualismo, o indivíduo será bem sucedido de acordo com suas capacidades individuais, independente da vontade de outras pessoas. Há uma separação nítida entre a esfera particular, a esfera pública e a esfera profissional no modelo burguês, tudo isto está misturado no modelo aristocrata, a lendária frase de Luís XIV “o Estado sou eu” tem de ser vista para além da aparente soberba do rei, de fato é difícil dizer nesta estrutura até onde vão os interesses do rei e do Estado, o Estado não é visto como algo autônomo, mas algo que depende da existência do rei e dos nobres para também existir. Enquanto para o nobre a honra é o seu orgulho pessoal, para o burguês a propriedade privada exerce esta função.

A família também exerce um papel profundamente importante nesta sociedade de corte, pois quanto maior for sua antiguidade genealógica como nobre, maiores são suas chances de prestígios. Pois equivale mostrar que desde a infância você teve uma educação adequada para um nobre, e que você tem aquele tipo de comportamento. Além de que havia certa recusa na aceitação de novas famílias no círculo da nobreza, pois a entrega de cargos importantes era feita com base na antiguidade da família na corte. Muitas famílias por vitórias militares se tornavam importantes e entravam nos círculos aristocráticos, e queriam passar instantaneamente na frente de outras na linha sucessória por causa disto, o que causava sempre muita confusão.

Ora, todas as relações entre os homens se convertiam em chances de prestígio nesta sociedade:

O nível social, o cargo herdado e a antiguidade da “casa”. Convertia-se em chances de prestígio o dinheiro que alguém possuía ou ganhava. O favorecimento do rei, a influência sobre a sua amante ou sobre os ministros, a participação em uma determinada “panelinha”, a liderança no exército o esprit, as boas maneiras, a beleza do rosto etc., tudo isso convertia-se em chance de prestígio8.

Saint-Simon dizia que na corte não interessava o que a coisa era, mas sim o que ela significava para determinadas pessoas. O modelo de sociedade burguês tende a coisificar, ou objetivar, as pessoas e as relações, a sociedade cortesã fazia o inverso personificava ao máximo as relações e até mesmo as coisas, pois interessava as pessoas e suas inter-relações. “No âmbito da etiqueta, eles não se reuniam ‘em função de uma coisa’”9. Interessava que cada indivíduo, e antes de todos o rei, tenha sua posição de prestígio legitimada pelos outros. A etiqueta, portanto, não é mera formalidade, mas obedece a uma rígida estrutura e a identidade coletiva e individual do cortesão.

Todo o ritual, e a etiqueta, que cerca uma corte não podem ser entendidos, portanto, conforme o exposto, em seu sentido prático, ou pragmatístico que geralmente atribuímos a todas as relações profissionais hoje em dia, estas relações são um fim em si mesmas, são o próprio sentido de ser. “Aquilo que é ‘racional’ depende sempre da estrutura da sociedade”10. A racionalidade industrial dá origem a uma coerção econômica, mas a racionalidade cortesã tenta em primeiro lugar tornar calculáveis as pessoas e as suas chances de prestígio.


Rei, prisioneiro da etiqueta

Por: João Vinícius


O rei talvez tenha uma situação um pouco melhor, pois se todos os outros nobres sofriam pressão de todos os lados, o rei era o único que não sofria pressão de cima, pois era ele quem estava no topo. No entanto, o rei também é prisioneiro da etiqueta, ele talvez mais do que todos os outros deveria mostrar porque era nobre. Quando alguém dentro da corte destoava do comportamento cortesão se dizia “ou ele é louco ou o rei não é nobre”11. Ou seja, permitir a ruína da nobreza, para o rei, é permitir a ruína de sua própria casa.

Sobre isto o próprio Luís XIV escreveu:
Estão enganados aqueles que imaginam tratar-se aí apenas de questões de cerimônia. Os povos sobre os quais reinamos, não podendo penetrar o fundo das coisas, pautam em geral seu julgamento pelo que vêem exteriormente, e o mais freqüentemente é pelas primazias e posições que medem seu respeito e sua obediência. Como é importante para o público ser governado apenas por um único, também é importante para ele que este que exerce essa função seja elevado de tal maneira acima dos outros que não haja ninguém que possa confundir ou compara-se com ele, e podemos, sem sermos injustos para com o corpo do Estado, retirar-lhe as menores marcas de superioridade que o distingue dos membros12.

Está aí o sentido da etiqueta para o próprio rei, não é simplesmente cerimônia, como ele mesmo diz, mas é algo que cumpre até mesmo com as formalidades aparentes que a própria sociedade exige, é preciso ver para crer. Além das aparências é preciso manter também a distância do povo. O rei não é mais um ser humano, por assim dizer, mas é a própria personificação do Estado, para cumprir este papel é preciso manter certa distância do povo, e também o luxo. Além da honra, que todos os nobres devem ter, o rei tem a glória e é ela que garante o seu prestígio máximo. Não somente tem o rei a legitimação civil como tem também a religiosa, o poder dele é formalmente absoluto. Ou seja, para o rei não é suficiente apenas exercer o poder, mas demonstrá-lo constantemente. Ele precisa ser o paradigma, ele é o primeiro de todos os nobres.

O rei também é quem mantém e regula as disputas entre os nobres. De certa forma o rei deve jogar os nobres uns contra os outros e anular assim as suas forças contra ele. Embora a mobilidade social na corte seja muito difícil de ser conseguida ela tem que permanecer como paradigma a ser buscado, é isto que motiva os nobres a disputarem entre si. Saint-Simon dizia que as festividades eram uma forma de punir ou bonificar publicamente os nobres, pois ali todos viam quem foi convidado e quem não foi. Além dos ciúmes, as invejas e os agrados cotidianos serviam de reguladores para o poder dos nobres, Saint-Simon dizia que ninguém sabia fazer isto melhor do que Luís XIV. A sagacidade de Luís XIV era tanta que ele mais beneficiava quem mais lhe devia favores e que sem ele nada seriam, é uma forma muito eficiente de dominação. Por isto Saint-Simon dizia que os preferidos eram observados mais de perto.

Neste contexto o rei assume características de um líder carismático, ele precisava ser a cola social da corte. As pessoas que ingressam na nobreza devem ter a sensação de estarem pertencendo a algo especial. Ao mesmo tempo elas devem ter o mesmo interesse, as ações deste seleto grupo têm que ser, em tese, a extensão da ação do rei, e esta tensão é canalizada para as chances de prestígio, ou seja, as disputas entre os nobres. Com o desejo dos nobres de ascender, e um disputando mutuamente com o outro este objetivo, eles acabam agindo como o rei deseja, pois é ele quem concede os benefícios, é ele a própria encarnação viva do grupo, e é ele quem determina de certa forma o padrão de comportamento que ele deseja. Seja do cargo mais alto ao mais baixo o rei precisa sempre estar pessoalmente intervindo, regulando as ações, e alimentando as disputas. No entanto, estas disputas têm que serem feitas na medida correta, pois fazê-las demasiadamente satura e convulsiona as instituições. Luís XIV não era um gênio inventivo e intelectual, mas sabia como ninguém a justa medida em conceder benefícios, alimentar disputas e monitorar seus súditos, enfim, sabia como administrar um Estado Absolutista de corte. Não é o que se percebe com seus sucessores, Nobert Elias diz que os demais soberanos não souberam fazer este jogo político e saturaram o Estado, de forma que ele estava praticamente insustentável na época da Revolução Francesa.

Mas não podemos esquecer que quanto maior for o poder do rei, maior é a corte que o cerca. E quanto maior for a corte, mais interesses o rei vai ter que satisfazer. Então, não podemos ver o rei como uma figura que “apenas manda” descompromissadamente, ele também sofre uma pressão muito forte por parte de todos os grupos que o cercam. Como não existe uma separação entre o privado, o público e o profissional, o rei tinha que cumprir com as normas de etiqueta sempre, sem folga alguma. Talvez nos seja inimaginável pensar a pressão que estas pessoas estavam submetidas todo o tempo. “Nada falta a um rei, salvo as delícias de uma vida privada”13. Vale lembrar que a vida do rei estava calculada nos mínimos detalhes, não havia um só momento em que ele não deixava de ser assistido. É por isto que o rei é também um prisioneiro da etiqueta, mas está numa posição diferenciada, já que todos os nobres sofriam pressões de todos os lados, e o rei não sofria pressão de cima, pois ele estava no topo da hierarquia. Além de equilibrar as tensões o rei também tem que ser um paradigma de nobreza a ser seguido, ele também é vigiado por todos os bajuladores e desejosos de ascender ao poder. Ele tem que ser um símbolo carismático que ligue toda a corte em torno de um interesse comum, e mais ainda, ele tem que cumprir com as expectativas populares, pois ele é o próprio Estado. Vemos quanto é complicado todo este complexo jogo que o rei tem fazer. Ele age como um jogador de xadrez que deve mover as peças de forma coerente, mas é evidente que ele não faz isto de forma arbitrária como só um deus poderia fazê-lo, ele também é pressionado por cada peça numa teia de interesses que somente com muito talento ele pode manipular. Cada jogada é pacientemente demorada e fria, o próprio jogador, no caso o rei, pode perder a partida por um movimento errado, pois muitos desejam estar em seu lugar. Não estamos falando de uma sociedade burguesa onde todas as funções estão muito bem divididas e são exercidas por diferentes cargos dentro de uma empresa onde o dono apenas assume também mais cargo, no mais das vezes, um cargo burocrático. O rei tinha que regular pessoalmente, ou ao menos simbolicamente, todos os nobres que viviam em sua corte, ao mesmo tempo em que ele também era regulado por todos os outros.


Sociogênese da Revolução

Por: João Vinícius


Nobert Elias faz um pequeno ensaio ao final de seu livro falando sobre as origens da Revolução Francesa. Para o autor, nos enganamos quando atribuímos apenas ao momento imediatamente anterior a Revolução as causas de sua gênese. Ele chama a atenção para o processo de democratização que vem surgindo desde o mercantilismo no século XVI, e com isto a conseqüente tomada de poder e importância por parte dos comerciantes burgueses, ou seja, devemos ver este fato como um processo de longa duração. A democratização não ocorreu abruptamente com a Revolução Francesa, ela foi um processo que já estava acontecendo lentamente há alguns séculos.

O que acontece é que vários grupos de burgueses entraram nos círculos da nobreza, acumularam influência e poder bastante para isto. A um burguês não bastava ter um poder social, mas também um nível social. A burguesia desejava se enobrecer. Mas a aristocracia, como já foi dito, não absorve instantaneamente estes novos grupos, muito pelo contrário, dificultam ao máximo o ingresso destes novos grupos no círculo cortesão, pelos motivos das chances de prestígio.

Como os mais altos cargos do governo pertenciam à aristocracia, além de grandes lotes de terra, a burguesia começou a ver a aristocracia, e o rei, seu representante máximo, como os principais responsáveis pelas condições que eles combatiam, os aristocratas eram responsáveis por impedirem a elevação dos lucros, o desenvolvimento do individualismo e da ascensão da burguesia a cargos governamentais. A utilização da violência era um monopólio do Estado, neste momento ainda aristocrático e cortesão, mas a burguesia também começou a se utilizar da violência para conquistarem os seus objetivos. Nobert Elias chama a atenção para um fato importante, a Revolução acabou, de fato, com muitos privilégios da maior parte da aristocracia do Ancien Régime, mas destruiu de forma muito mais radical e definitiva as camadas privilegiadas da burguesia que se beneficiavam com o antigo sistema.

Temos ainda que pintar neste quadro a saturação da corte, que aumentava de tamanho, ainda que lentamente, e com isto aumentavam também os jogos de interesses, que Luís XV e Luís XVI não tinham tanto talento de conduzir como Luís XIV. Também não eram feitas reformas na corte, pois uma reforma sempre beneficiaria uma parcela da nobreza e prejudicaria outra, e isto era inaceitável para os nobres que seriam lesados, ou seja, o sistema de corte tende para a imobilidade, enquanto a sociedade está em constante mudança. No final do século XVIII a pressão vinda de baixo era tão forte que não havia como a corte responder a tais expectativas tentando manter o velho modelo.

A burguesia se une às massas de grupos excluídos, não para partilharem com eles o poder, mas para conquistá-lo para si através do uso generalizado da violência. Neste contexto, Nobert Elias diz que existem três alternativas para os monopolistas detentores do poder tomar com relação aos grupos excluídos. A primeira seria a admissão institucional e regulada destes grupos no poder. A segunda seria fazer concessões a estes grupos, sobretudo, econômicas, mas sem acesso ao monopólio do poder central. A terceira é não admitir que as relações mudam e não alterar o sistema vigente. No caso francês, a aristocracia foi incapaz de fazer qualquer mudança, ou seja, foi pela terceira opção proposta na analise de Nobert Elias. Nestas condições, o uso da violência foi a escolha tomada por parte dos revolucionários, mudando assim definitivamente as forças de diversos quadros sociais e suas relações mútuas. Dentro do sistema de corte somente uma força externa e violenta poderia alterá-lo, já que por si só o sistema de corte tende a imobilidade.



Referências Bibliográficas
ELIAS, Nobert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte; tradução – Pedro Süssekind; prefácio – Roger Chartier. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
DUBY, Georges. A Sociedade Cavaleiresca; tradução – Telma Costa. Lisboa: Sanfil Ltda, 1989.
LANDURIE, Emmanuel Le Roy. Saint-Simon ou o sistema da Corte/ com colaboração de FITOU, Jean-François; tradução GUIMARÃES, Sérgio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.