quinta-feira, 30 de outubro de 2008

TEXTOS IMPRESSOS E PRÁTICAS DE LEITURA NA EUROPA MODERNA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTORIA





TEXTOS IMPRESSOS E PRÁTICAS DE LEITURA
NA EUROPA MODERNA




Israel Ozanam
Laércio Dantas
Raimundo Fábio
Tássia Brandão








RECIFE
2008






Trabalho apresentado na disciplina História moderna II, ministrada pelo professor Severino Vicente da Silva, como parte dos exercícios propostos para obtenção da média semestral.







Sumário

1. Introdução..................4
2. O acesso a escrita e a leitura na idade moderna.........5
3. Práticas literárias e de leituras.......................6
3.1. “Progresso” Medieval..............................6
3.2. Leituras e literatura na era Clássica.............7
3.3. Literatura erótica................................9
3.4. Nova função da Literatura Romanesca...............9
4. Os impressos e as modalidades de leituras a partir do Prólogo da Celestina, de 1507......................................................10
5. A literatura de cordel..................................11
6. Práticas e representações das leituras camponesas em França no século XVIII......................................................13
7. O povo e a Palavra Impressa..............................15
8. O Universo da literatura clandestina no século XVIII.....19
8.1. Mercado literário ilícito..............................21
8.2. Ciclos do mercado literário ilícito....................21
9. conclusão........................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................25





















1. INTRODUÇÃO

Neste trabalho temos por interesse traçar uma visão das práticas de leitura e suas bases materiais na França moderna, entendendo que algumas dessas práticas podem ser encontradas fora da França, mas nosso estudo é, sobretudo, baseado nos franceses. Não podia ser diferente devido as fontes usadas nesta pesquisa que, em sua maioria, são constituídas por autores da nova história cultural, e que os principais autores utilizados, Roger Chartier, Robert Darnton e Natalie Zemon Davis, tem um gosto especial pela França moderna.

Quem se interessar em ler esse trabalho, constatará que traçamos um perfil das várias práticas de leitura no decorrer da era moderna, e também das condições materiais, ou intelectuais, que fazem parte dessas práticas. Dessa forma, não esquecemos da “margem”, ou seja, dos protagonistas anônimos da história, parafraseando Ronaldo Vainfas, os camponeses, suas práticas de leitura, assim como as modificações desta, se fazem presente com a intervenção dos estudos de Chartier e Natalie Davis, principalmente desta última. Por fim, a literatura clandestina na França pré-revolução é a última parte de nossa empreitada, uma época onde, através de artimanhas e expedientes diversos, tanto editores quanto livreiros procuram uma maneira de obter lucros num capitalismo ainda incipiente, mas suficientemente forte para trazer ao mercado literário a “ideologia” do lucro.
Esperamos de alguma forma contribuir para aumentar o conhecimento pretendido sobre a Europa Moderna e lhes dar uma leitura agradável sobre os temas propostos. Desejamos uma boa leitura a todos.






2. O ACESSO A ESCRITA E A LEITURA NA IDADE MODERNA.

De uma maneira geral, embora variável de região para região, segundo Chartier, a Europa da Era Moderna experimenta uma fase de maior alfabetização, embora afirme que não se possa fazer uma correlação imediata entre o crescimento do número de pessoas que sabem assinar seu nome a partir do século XVI, que são as fontes utilizadas na sua pesquisa, e o número daqueles que realmente sabem ler. Nem que esse progresso tenha sido linear e contínuo, contudo afirma que isso significou uma maior difusão e maior acesso a produção da escrita, nas sociedades ocidentais, entre os séculos XVI e XVII.
O acesso à escrita, assim, se mostra crescente, mas também de forma desigual. A primeira desigualdade é entre homens e mulheres. Em todas as regiões analisadas pelo autor, se afirma que há uma predominância, um maior percentual entre 25% e 30%, dos homens em relação às mulheres. Essa análise, ressalta Chartier, não deve ser levada a termos exatos, para uma comparação em relação ao hábito da leitura. Pois em geral o ensino nas Escolas de Mulheres, instituições antigas incluíam a aprendizagem da leitura, mas não necessariamente a da escrita.
A segunda desigualdade apresenta-se entre os ofícios e as condições sociais. Os clérigos, os gentis-homens e os grandes comerciantes, em geral têm um maior conhecimento da escrita, se comparados aos artífices ( ourives, celeiros, fabricantes de tecidos), ou lavradores. A relação entre comerciantes e aldeões, estão numa relação onde apenas 30% ou 40% sabem assinar o próprio nome. Nas cidades a hierarquia das profissões também representa motivos de variação, do acesso a escrita; mas segundo Chartier, nas áreas urbanas o progresso apresenta um avanço maior que nas áreas rurais.
A dispersão espacial da escrita concentra-se, principalmente, na parte Norte/Noroeste da Europa. Segundo as próprias modificações históricas de cada Estado. Aqueles onde foi empreendida a Reforma Religiosa, com a instituição de uma Igreja subordinada ao Estado, como na Inglaterra; verificou-se uma maior difusão tanto da leitura como da escrita, uma verdadeira campanha de alfabetização. Segundo Chartier “para que todos os fiéis pudessem aprender a ler e ver com seus próprios olhos o que Deus ordena e comanda através de sua Palavra sagrada”.
As religiões desempenham um papel que vão além de compreensões diferentes de mundo, também são reguladoras de acesso ao livro. Segundo Chartier, há uma predominância de uma maior propriedade de livros entre protestantes do que entre católicos. Nas suas bibliotecas quase sempre, embora em pequena quantidade, havia livros profanos, assim entendidos o que não fosse a Bíblia, alguns livros de cantos religiosos e outros poucos. Pois havia uma idéia de ler, no medievo, um tanto restrita, “ler significa retomar sempre os mesmo livros, poucos numerosos além da Bíblia e transmitidos de geração a geração[...]. Ler numerosos livros só afasta a meditação. Ler muito constitui uma opressão da mente” (p. 134). Idéia que será modificada na Idade Moderna.
Contudo, Chartier ressalta que não se pode generalizar, nem concluir que a Reforma Religiosa foi responsável, em todo lugar, para difundir a obrigação do fiel protestante de praticar uma leitura generalizada. Ao contrário disso, na Alemanha, por exemplo, Lutero em 1520 já pregava uma leitura das escrituras sagradas disciplinada, através da prática do catecismo e da prédica; ministradas pelos pastores.
Assim, a difusão da leitura e o desenvolvimento da alfabetização, que se inicia em uma Europa ainda medieval foi, até os fins do século XVI, privilégio de poucos, como os clérigos ou mesmo um período de obscurantismo, e de fraca alfabetização. Mas a partir do século XVII, depois de um longo tempo de resistência imposta pelo cristianismo em relação à difusão da leitura e da escrita como uma forma de monopolizar o acesso ao conhecimento, as sociedades européias inseriram-se na escrita, segundo Chartier. A partir daí, cai a idéia dos clérigos como intérpretes de Deus, e únicos conhecedores da natureza e do Estado; caem as proibições e limites sobre o acesso ao conhecimento, bem com a idéia da transmissão a um grupo restrito.

3. PRÁTICAS LITERÁRIAS E DE LEITURAS

3.1. “PROGRESSO” MEDIEVAL”

A Idade Medieval é considerada um período onde havia uma predominância das relações públicas entre indivíduos, os ritos comunitários e as redes de relação impunham aos indivíduos várias obrigações sociais para com o outro. Segundo Goulemot a essa imposição opõe-se as práticas das era Clássica. Nesse período a constituição do Estado transforma a sociedade civil, o poder público passa a ter o controle da violência, começa a controlar as pessoas, as produções dos bens e dos signos culturais. Assim, surge um espaço para as práticas mais reservadas que não deveriam se expostas, dentro da lógica civilizadora, dessa forma, esse espaço se torna o refúgio para o indivíduo, é o foro privado e a sua intimidade.
Em contraposição a essa era clássica, a literatura Medieval era praticada e transmitida em geral de forma oral, e possuía um caráter público. Alguns exemplos da literatura Medieval, como as canções de gesta, chansons de toile (contada pelas mulheres enquanto teciam), representam bem essas práticas. A leitura não é, ainda, uma prática íntima ou individual. No seu conteúdo, a temática das obras medievais, segundo Goulemot, está impregnada da defesa da cristandade e pela narração de guerras fratricidas. O grande progresso Medieval na prática de leitura se dá ainda em meados do século XII, pois, a partir dessa época, os monges copistas desenvolveram um tipo de leitura que utiliza apenas os olhos, prática que se tornará costumeira entre os leitores, até se tornar a maneira usual de ler a partir do século XVI, pelo menos para os mais familiarizados com a escrita e que tiveram acesso a uma alfabetização. A leitura silenciosa servirá para distinguir aqueles que sabem ler efetivamente dos leitores incipientes, isso até pelo menos o século XIX.

3.2. LEITURAS E LITERATURA NA ERA CLÁSSICA

Nos primórdios da Idade Moderna a invenção de Gutemberg – a imprensa dos tipos móveis -, segundo Burke representou sem sombra de dúvidas um avanço na solução do problema da escassez de textos da Alta Idade Média, e que tinha uma demandada crescente no final da Idade Média devido a um número maior de homens e mulheres alfabetizados. Mas Burke analisa o outro lado desse fenômeno, ou que ele chama de “efeitos colaterais”.
Em sua análise Burke chama atenção para reviravolta causada pela difusão do livro operada pela invenção da imprensa. As reações e as críticas a invenção, segundo Burke, foram diversas, desde dos antigos copistas, acostumados a reproduzirem textos manuscritos, pois perderam essa função, passando pelos eclesiásticos que temiam que a imprensa estimulasse a leitura por leigos das escrituras sagradas, e assim perderiam ou teriam sua autoridade diminuída; ao passo que a Igreja reagiria com a instituição do Índice Católico dos Livros Proibidos – Index; até mesmo alguns humanistas temiam a propagação desmedida dos livros. Assim, junto com a difusão de impressos, geraram-se grandes “problemas” como a leitura de outros livros que não a Bíblia pelos fiéis; a divulgação dos jornais e periódicos, aumentando a discussão de medidas políticas dos governos – que Burke chamou metaforicamente de o problema da “explosão da informação”.
Para Chartier na Idade Moderna experimenta-se, ainda, a “revolução da leitura”. Representada pela passagem da leitura oral para leitura silenciosa, proporcionando a abertura de novos horizontes. Através dela estabelece uma relação íntima, entre o leitor e aquilo que se está lendo. A leitura feita sozinho, segundo Chartier, permite uma maior liberdade para determinada audácias, como realizar as leituras heréticas, idéias críticas, ou mesmo pornográficas. Contudo, se a invenção da imprensa constituiu uma revolução, pois possibilitou uma maior reprodução e, por conseguinte, maior acesso a textos impresso, a revolução na leitura permaneceu restrito a poucos laicos, convivendo lado a lado com as leituras em voz alta, e coletivas.
Outra revolução na leitura, apontada por Chartier ocorreria no século XVIII, que seria a sucessão da leitura intensiva, onde o leitor tem acesso a poucos livros que lê e relê ao longo de sua vida várias vezes e repassa de geração para geração. Entre esses livros lidos, relidos e decorados figuravam principalmente a Bíblia. Para uma leitura extensiva, onde o leitor intensivo “consome” um número maior de impresso.
A literatura, na era Clássica, adquire uma maior liberdade quanto a seu conteúdo que conterá, cada vez, um maior número de diários íntimos, memórias, romances em primeira pessoa, relatos utópicos, romances libertinos e eróticos. Segundo Goulemot, esses últimos colocam o leitor no status de voyeur, permitindo uma apropriação de informações privadas de outro. O que para Chartier constitui um paradoxo, pois o leitor não se mostra apenas passivo nesse processo; ele se apropria do alheio e “invade uma terra que não lhe pertence”, dessa forma constituindo uma nova legitimação para a literatura. Esta adquire uma importância fundamental no processo de civilidade da sociedade, sendo, cada vez mais comum, as pessoas da elite posar para retratos portando um livro. Este, por sua vez, passa a representar um símbolo de poder, status de letrado e civilidade . Contudo esse fenômeno não ocorreu sem lutas, conforme postula Goulemot; pois a literatura da era Clássica está impregnada de obscenidades, do orgânico e mesmo do escatologismo barroco. Atos orgânicos como urinar, defecar são retratados em algumas obras; a embriaguez e o vômito, representando uma ofensa ao projeto de civilidade; o ato sexual, o coito, uma ofensa a moral e ao decoro.

3.3. LITERATURA ERÓTICA

O período Clássico foi de grande expressividade na produção das narrativas erótica, libertina, obscena, e pornográfica, reunindo-os, o gênero do romance erótico, ocupa um espaço na literatura do século XVIII. Segundo Goulemot, autores e filósofos clássicos como Voltaire, Rousseau e o Enciclopedista Diderot não permaneceram de alheios a esse movimento pornográfico. Datam da era Clássica títulos como Teresa Filósofa (1748), texto anônimo, mas recentemente atribuído ao marquês d'Angens , e as obras do marquês de Sade (1740-1814).
Aceito ou não, combatido ou exaltado, segundo Goulemot o romance erótico esteve em toda partes [classes sociais e lugares], na praça pública nos salões e nos boudoirs franceses, até mesmo nos panfletos revolucionários. Para Goulemot a literatura erótica representou uma luta por uma leitura da violação, pois no romance erótico se encontra uma narração dirigida ao leitor em forma de diálogos, que segundo Goulemot se aproxima dos romances contemporâneos.
Assim, segundo Goulemot, muito mais do que representação do erotismo e do obsceno, alguns romances, em especial os de Sade, representaram a transposição de proibições, deram em seu conjunto novo sistema de credibilidade ao romance.

3.4. NOVA FUNÇÃO DA LITERATURA ROMANESCA

Nos fins do século XVII, Goulemot afirma, o romance adquire o aspecto de criar certo efeito de verdade no texto literário. Esse começa a representar um discurso espontâneo em primeira pessoa, feito não para a publicação e por um “não-escritor”; o romance tenta, assim, dar um fundo de verdade à narrativa. Eis aí a problemática que surgirá em torno da proliferação dos livros, em especial o romance, considerado corruptor das mentes mais fracas. A problemática, para Goulemot, pode ser questionada pela ótica das ideologias políticas, posto que alguns romances inserem o leitor nos conflitos da época, sendo o romance em primeira pessoa uma representação, antes de tudo, de um relato íntimo. Nessas obras as revoluções são mostradas naquilo que não aparece nas práticas políticas e que há de mais escondido, as razões privadas como paixões incontroláveis, ciúmes e desejos amorosos.
Com o apogeu do romance no século XVIII, a relação entre leitor e a obra se modifica. O leitor extrapola o seu status de passividade. Para Goulemot, com Rousseau a verdade no romance passar a ser sugerida, e não mais preconcebida, assim, cada texto inventa um leitor. Com Rousseau, segundo Goulemot, inicia-se a uma nova fase na literatura, onde a relação leitor-obra vacilará entre o íntimo, já que o romance permite ao leitor o acesso ao privado; e o público onde o leitor se reencontra aos sabores das manifestações sociais, ideologias e contradições.

4. OS IMPRESSOS E AS MODALIDADES DE LEITURAS A PARTIR DO PRÓLOGO DA CELESTINA, DE 1507

Fernando de Rojas foi um escritor espanhol do início da idade moderna, autor da tragicomédia A Celestina. No prólogo de uma edição publicada em Saragoça em 1507, quando o trabalho já havia sido publicado anteriormente, em 1499, Rojas procura entender o porquê de A Celestina ter sido interpretada de maneira tão diversa desde que foi a público.
Baseado nos conhecimentos disponíveis na época, o autor entenderá que essa diversidade provinha tanto das diferenças dos humores quanto da variedade de expectativas e capacidades dos seus leitores, os quais ele distingue pela faixa etária. Observando as formas como estes utilizam o seu texto, o autor identifica três tipos de leitura na tragicomédia: 1. aquela que dá atenção apenas a alguns episódios da história, 2. a que prima pela retenção apenas de fórmulas, lugares-comuns e expressões feitas, de forma isolada e sem relação com o conjunto da obra, e, 3. a leitura que capta o texto em sua totalidade, sem as mutilações que procedem as outras duas formas de leitura. Esta última seria a leitura correta para Rojas.
Para Roger Chartier, no seu livro História Cultural: entre práticas e representações , essa tensão entre prática criadora dos leitores e as tentativas de autores e editores de impor interpretações corretas será constante na história da leitura e, de fato, é possível perceber já no final do século XVIII uma postura semelhante por parte do Filósofo alemão Fichte em relação à interpretação da sua obra Sobre o conceito da doutrina-da-ciência. Assim, tanto no próprio conteúdo do texto quanto por meio de prefácios, advertências e notas, os editores e autores dos livros buscavam impor o que consideravam a compreensão adequada de seu conteúdo.
Conforme Chartier, as recomendações contidas nas obras podem trazer pistas sobre as sociabilidades da leitura, porquanto é possível verificar orientações para como proceder ao efetuar a leitura em voz alta, o que indica a permanência desse tipo de leitura nos séculos XVI e XVII, e mesmo as possíveis relações entre textualidade e oralidade, tanto no sentido das diferenças consideráveis entre a cultura do conto e a da narração e a cultura da escrita. As aproximações entre as duas esferas, tendo em vista as fórmulas da cultura oral em textos destinados ao grande público e, por outro lado, o regresso à oralidade de muitos textos, como os clericais.
Ainda no prólogo de Rojas, percebe-se que, para ele, a ação dos impressores foi um dos aspectos que contribuiu para a uma compreensão que ele considerava equivocada do seu livro. Dentre os textos impressos na Europa Moderna, há um conjunto cuja unidade é, em parte, devida justamente à forma como se dava essa intervenção dos impressores na sua estrutura : a literatura de cordel.

5. A LITERATURA DE CORDEL

Nos séculos XVII e XVIII ganha impulso na França, assim como na Inglaterra (chapbooks) e na Espanha (pliegos de cordel), um tipo de publicação difundido, sobretudo, pela venda ambulante em grande quantidade e a um baixo preço. Inventada na cidade francesa de Troyes, a literatura de cordel era composta por uma grande variedade de gêneros literários e não apenas aqueles considerados populares. O fato é que as obras utilizadas pelos impressores dessa literatura estavam geralmente vinculadas à tradição erudita, como, por exemplo, no caso de contos de fadas que, provenientes do meio aristocrático, já haviam recebido anteriormente edições comuns em cidades como Paris antes de serem adaptadas pelos impressores de Troyes.
Ao mesmo tempo, como afirma Chartier, embora algumas vezes uma obra chegue a tornar-se livro de cordel muito tempo depois da primeira edição, não se pode dizer que a opção por textos mais antigos era uma tendência. Isso porque, logo que os direitos do primeiro editor sobre a publicação de um livro expiravam, os editores de Troyes procuravam igualmente introduzi-los na coleção de livros de cordel. Do mesmo modo, para o autor, não são os próprios textos, visto que também provinham dos meios eruditos, que determinam a singularidade dos cordéis, mas sim a intervenção editorial no sentido de adequá-los à capacidade dos leitores que pretendem abranger. Os impressores modificavam os livros orientados pelas representações que construíam “das competências e das expectativas culturais de leitores para quem o livro não é algo familiar.”
Com isso, apesar da diversidade dos gêneros, a seleção dos livros que entrariam no catálogo dos cordéis não era aleatória, mas seguiam uma linha no que se refere à constituição do texto, a qual os editores acreditavam adequada às possibilidades que eles atribuíam a seus potenciais leitores. Por exemplo, as histórias de ficção privilegiadas eram aquelas cuja narrativa fosse descontínua e repetitiva, não exigindo muito da memória. Será, portanto, visando a reforçar os aspectos que consideravam necessários para alcançar o amplo público que desejavam que os editores de cordéis promovessem significativas intervenções nas obras a serem publicadas.
Essas intervenções poderiam dar-se de diferentes maneiras. Uma delas consistia na multiplicação dos capítulos e na ampliação do número de parágrafos, fazendo com que o texto ficasse distribuído de maneira menos densa na página. Apesar dessa não ser uma prática introduzida pela literatura de cordel, é nela que se intensifica. Esse fracionamento está relacionado à idéia de que a leitura não será contínua. “Daí também a multiplicação, nos textos do corpus de Troyes, das recapitulações e dos resumos que permitem voltar a ligar o fio de uma leitura interrompida.” Outra forma de intervenção se dava na própria construção dos períodos do texto, através da substituição ou contração de frases e de cortes em trechos das histórias considerados supérfluos.
Convém destacar que a intervenção dos editores se dava também no sentido de suprimir expressões consideradas contrárias aos preceitos morais e religiosos. Isso mostra, segundo Chartier, que a literatura de cordel participa da Reforma Católica na França, eliminando os conteúdos considerados nocivos à crença e não apenas editando obras religiosas, o que, diga-se de passagem, era amplamente realizado. Assim, esse trabalho de transformação da forma e do conteúdo dos textos, realizado pelos impressores, mas também por clérigos e homens de letras, tinha por finalidade moralizar o conteúdo que seria lido e também simplificá-lo de maneira a possibilitar essa leitura pelos seus compradores. Entretanto, essas interferências muitas vezes acabavam por aumentar as dificuldades na compreensão, muito embora esta, no final das contas, não fosse necessariamente a aspiração dos compradores dos livros, para os quais uma leitura minuciosa da obra parecia desnecessária em face à importância dela como aglutinadora de conhecimento, mesmo que não lido.
Enquanto que inicialmente os compradores de cordéis viviam principalmente na cidade, com o tempo a clientela vai se tornando cada vez mais rural. Essa será a tendência no século XVIII, no qual os cordéis, apesar da variedade de gêneros literários que abrangem, passarão a nomear especialmente os romances e contos e aos poucos passarão a integrar a cultura camponesa e mais tarde serão descriminados juntamente com ela pelas elites da Revolução.

6. PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DAS LEITURAS CAMPONESAS EM FRANÇA NO SÉCULO XVIII

As constatações da elite letrada francesa acerca do interesse dos camponeses pela leitura no final do século XVIII foram variáveis e contraditórias. Para alguns os camponeses não possuíam qualquer contato com os livros, uma vez que, em sua maioria, nem sequer sabiam ler. Para outros, porém, a leitura era algo que os atraía e bastava que lhes dessem oportunidades de ter acesso aos livros para que bons resultados fossem atingidos. Dentre os entraves apresentados à expansão da leitura entre os camponeses era destacada a baixa circulação de livros no campo e a impossibilidade da instrução por falta de professores. A posição da Igreja parece contraditória, pois, embora em certos momentos seja representada como uma instituição contrária à leitura por parte dos camponeses, por outro, ela “enquanto instituição, não deixa de ser a única a incitar à leitura”. O fato é que até mesmo os padres são criticados por não lerem, dizia-se inclusive que liam tão pouco quanto o povo. De resto, é possível encontrar também recomendações por parte de clérigos para que eles concedessem livros aos camponeses.
Entre os livros muito citados como pertencentes aos camponeses encontram-se os livros das Horas. A considerável presença das obras religiosas no campo está relacionada a uma política diocesana de distribuição de livros, depois favorecida por um regime instituído pela Coroa em 1777, segundo o qual poderiam ser reeditadas livremente as obras cujos direitos tivessem expirado. Os homens de letras que comentam esses aspectos da cultura camponesa no final do século XVIII não incluem as obras religiosas entre os cordéis; a essas alturas estes parecem estar associados a crenças supersticiosas, fábulas inúteis e preconceitos antigos que levam alguns homens de letras a acreditarem na necessidade impor livros que eduquem o homem do campo.
Buscava-se, portanto, evitar que a literatura, que deveria ser fonte de instrução e patriotismo, se tornasse exemplo de depravação para os camponeses com a leitura de obras perigosas trazidas pelos vendedores ambulantes, que são muito mencionados como difusores de livros de baixa qualidade, como os almanaques e os de cordel. Mais de uma vez aparece a oposição entre “o camponês e o comerciante, o natural e o forasteiro, a piedade e a virtude naturais dos campos e a corrupção vinda de fora, da cidade.”
Talvez, decorrente desse tipo de percepção do campo em oposição à cidade, a idéia de que a leitura, em voz alta durante os serões, fazia parte do cotidiano dos camponeses, permeava o imaginário de uma elite letrada que guardava expectativas em relação ao homem do campo que nem sempre correspondiam às suas atitudes. Para Chartier, se por um lado esse tipo de representação da família camponesa que escuta atenta a uma leitura oralizada era um motivo recorrente nas obras de arte do século XVIII, por outro lado não é possível encontrar evidências documentais que indiquem que os camponeses tivessem de fato o hábito de realizar esse tipo de leitura em seus espaços de sociabilidade.

7. O POVO E A PALAVRA IMPRESSA

A historiadora Natalie Zemon Davis em seu livro, Culturas do Povo – Sociedade e Cultura no início da França Moderna-, trata entre outras questões, da relação entre: o povo e as práticas de leitura e escrita, e que influência a palavra teve numa sociedade onde o dito povo em sua boa parte não era alfabetizado.
Para compreender a trajetória desta prática cultural, Davis traça um paralelo desde a entrada da palavra impressa na vida popular do século XVI, até o século XVIII com a consolidação da função da (..) no seio da sociedade moderna, fazendo desta uma de suas grandes características. Para Davis a palavra impressa, juntamente com seu uso e deciframento, penetrou de variadas e complexas formas na vida popular moderna, criando novas redes de comunicação, abrindo novas opções para o povo e também oferecendo novas formas de controlá-lo .
Para compreender essa trajetória há inicialmente a problematização de duas questões primordiais: que influência a escrita e a leitura poderiam ter numa sociedade onde o nível de analfabetismo era elevado até mesmo para os nobres? E o que significam exatamente as palavras povo e popular dentro da teia da construção e dissipamento dos saberes?
No século XVI a palavra povo era utilizada com as seguintes conotações: nativos do reino, corpo de habitantes no qual uma lei os objetivaria, cidadão não letrados e ainda o trabalhadores da terra e ou aqueles que se ocupavam de serviços menores . Na cultura popular escrita do século XVII e XVIII continua sendo utilizado como povinho, contudo, passa a designar e enfatizar mais os camponeses do que os cidadãos urbanos.
Davis observa que durante os séculos XVII e XVIII, houve na França uma grande impressão de livros chamados de capa azul, onde seus editores tinham o objetivo de manter o cidadão comum informado, por meio da venda destes livros que tratavam sobre as necessidades e gostos das aldeias, na Inglaterra houve um movimento parecido a chamada literatura elizabetana – por ou para o cidadão comum –. No entanto, observa que não é possível traçar um perfil de um grupo social dado, pelo simples fato que nem sempre a escrita é feita por um cidadão comum e também não são apenas estes que consumiam estes impressos. Outro ponto que é necessário chamar a atenção é que o leitor não necessariamente concorda ou toma pra si aquilo que lê, que a construção da compreensão é bastante complexa e repleta de variáveis.

Assim, poderemos entender melhor as relações entre a palavra impressa e o povo se fizermos duas coisas: primeiro, se complementarmos a análise temática dos textos com evidências sobre os públicos, que possam oferecer um contexto para o significado e os usos dos livros; segundo, se considerarmos um livro impresso não apenas como uma fonte de idéias e imagens, mas como um mensageiro de relações. Os dados para apoiar tal abordagem estão espalhados pelas páginas das próprias edições originais; nos estudos sobre a alfabetização e os dialetos, a compra e o preço dos livros, a política de publicações e de produção e em fontes sobre os costumes e a vida associativa de camponeses e artesãos.

A partir da análise comparativa de outros estudos sobre produções escritas e o uso da leitura na Europa moderna, Davis procura no artigo enfatizar a maneira como se deu esta estrutura social de consumo e produção intelectual, e os valores que traçaram o uso da alfabetização e da palavra impressa. Desse modo o texto foca o uso dos livros impressos entre ambientes populares definidos na França moderna, e defende a idéia que as cidades de: Paris, Lyon, Ruão, Toulouse, Poitiers, Bourdeux, Troyes, tornaram-se o centro editorial da Europa, que o modelo adotado pelas gráficas francesas servia de modelo para outros editores europeus, justifica-se pelo fato que as gráficas francesas mesmo após a reforma religiosa continuaram sob o controle de “capitalistas industriais” e alguns artesãos (famílias de editores) que decidiam o que era lucrativo/útil para ser impresso.
Os camponeses do início da idade moderna geralmente só obtinham acesso a palavra escrita ou a leitura através de anúncios oficiais, da igreja ou através de tabeliães itinerantes que passavam nas aldeias para homologar contratos, nos inventários quase não se mencionava manuscritos ou livros, entretanto a questão não se tratava apenas de poder aquisitivo, durante os primeiros séculos da era moderna, era deveras difícil encontrar um livreiro próximo ou mesmo a presença de gráficas no mercado mais contíguo a aldeia, além de que o francês era a língua mais utilizada nas impressões o que dificultava a compra de impressões pro camponeses que eram letrados apenas em dialetos.
O livro mais popular no período para o público camponês eram os Calendários de Pastor, que além de conter informações de uso agrícola, tinham também ditos populares e questões de comportamento, o que Davis questiona é a usabilidade de um livro que continha informações que todo agricultor sabia ou qualquer parteira. As edições do século XVII eram repletas de figuras e transformou-se num verdadeiro almanaque, mas na verdade reunia em si um conjunto de práticas comuns entre os camponeses, o que na verdade o tornava um uniformizador de comportamentos do que propriamente um formador destes.
Como a idéia de impacto da produção escrita e leitura está ligada à mudança de comportamentos sociais, até então os camponeses tinham nas suas tradições orais e locais todo o seu substrato cultural? Mas na passagem do século XVI para o XVII institui-se a villée nas aldeias, que era um ponto de encontro dos habitantes em determinadas épocas do ano onde havia intenso convívio social onde homens alfabetizados liam livros em voz alta, o título mais popular era Ésopo.
As gráficas passaram a disponibilizar livros para essas reuniões, mas em sua maioria eram edições bem antigas, cheias de erros tipográficos e com linguagem ultrapassada, quanto nos meios urbanos os cidadãos experimentavam as novas edições em grego e latim, ou num francês mais contemporâneo. O camponês que realizava a leitura, na verdade traduzia para o entendimento dos ouvintes, e este ato de escuta ia formando novos universos mentais dentro do imaginário camponês, com o advento da reforma a bíblia em francês passou a figurar entre os títulos mais populares para essas leituras. Para a maioria dos camponeses, a religião da bíblia, dos salmos, dos consistórios deixava pouco espaço à cultura oral e ritual, tradicional do mundo rural, às formas existentes de vida e de controles sociais , talvez por isso a penetração do calvinismo entre o campesinato francês tenha sido mais forçada por poderosos do que propriamente uma adesão doutrinária.
Natalie Davis chama a atenção que o trabalho do editores protestantes foi de fundamental importância para disseminar a cultura escrita na área rural, pois, estes não temiam a rejeição ou a possibilidade de lucro zero, objetivavam levar o evangelho reformado a todas as pessoas. Esse fluxo de idéias e de livros motivou também a escrita de livros que tratavam do camponês como ator, muitos escritores na modernidade francesa buscaram olhar para como pensava o camponês na produção das suas obras, não somente o que o camponês precisava saber como nos antigos calendários. Os almanaques do século XVII e XVIII continham novas informações sobre cultivo e colheita, além de informações comerciais.
Para o campesinato francês a palavra impressa abriu novos horizontes no imaginário, contudo não foi eficaz ao ponto de transformar práticas sociais ou de trabalho, por conta principalmente do seu difícil acesso aos livros e do que era publicado, além do uso destes para o camponês.
Já o cidadão urbano vivia numa realidade diferente, boa parte dos artesãos e outras profissões correlatas, eram alfabetizados, até meninas órfãs aprendiam o ABC nos orfanatos recém criados. O estímulo a educação estava associado ao progresso econômico, tecnológico e social, só o trabalho gráfico criou uma enorme aglomeração de ofícios (incluindo-se a encadernação e a moldagem de tipos gráficos), nos quais o índice de alfabetização eram altos .
Naturalmente não era homogêneo o nível de alfabetização, profissões como gráficos e boticários tinham altos índices de leitura, enquanto pedreiros e cultivadores urbanos apenas sabiam assinar o próprio nome. Uma diferença significativa entre o potencial leitor camponês e o urbano é o fato que o segundo tinha maior domínio da língua francesa, que no século XVII já era a língua oficial do governo e deste modo o cidadão urbano poderia aproveitar melhor o que estava sendo impresso.
O leitor urbano muitas vezes não comprava o livro, compartilhava-o através de grupos de leitura, juntado letrados e iletrados, em reuniões de divertimento que contrastavam a villée rural, os cidadãos das cidades possuíam livros específicos para a leitura em voz alta ou para consulta (relacionados ao trabalho que desenvolviam), eram comuns também os manuais de aritmética e de profissões, como também os livros com vidas de santos. Uma característica bastante específica nos manuais produzidos por e para leitores urbanos, é a intenção de estabelecer diálogo com o leitor, esta ação acontecia especificamente nos manuais, onde artesãos das mais diferentes áreas compartilhavam suas experiências com outros ou até mesmo com acadêmicos.
Mulheres também se lançaram no mercado editorial, se concentrado em manuais de bom comportamento ou da prática do parto, e dentre as citadas no texto, acreditavam que suas ações incentivariam outras mulheres ler e escrever. Ao analisar o menu peuple Natalie Zimon Davis defende que entre o povo, seja rural ou urbano, a chegada e instalação no cotidiano da leitura e da palavra impressa não minou as suas tradições, pelo contrário fortaleceu a cultura já existente. As imagens mentais que criavam enriqueceram suas relações, mas não a mudaram, pois, não eram apenas receptores passivos do que liam ou ouviam apenas, eram usuários e interpretes e ajudavam a dar forma ao que era produzido.

8. O UNIVERSO DA LITERATURA CLANDESTINA NO SÉCULO XVIII

É difícil encontrar título melhor que o dado por Robert Darnton a seu trabalho sobre a literatura clandestina no século XVIII, edição e sedição. Como pensar na revolução francesa sem os grandes autores das luzes? É o que constatou Daniel Mornet, antigo historiador que teve por tema o mesmo de Darnton, o universo dos livros no antigo regime. Tal trabalho, ou melhor, a constatação da ausência dos grandes autores das luzes, serviu de impulso para a imersão de Darnton pelo universo da literatura proibida do século XVIII. Pois que, sem dúvida esses livros circulavam na França, mas não de maneira lícita, devido à censura do Estado absolutista francês, e sim por debaixo dos panos, onde os códigos da sociedade do século XVIII se fazem necessários para se entender como tais livros chegavam aos ávidos leitores franceses.
Mas, antes de tudo, o autor adverte que: deve-se entender a presença de sedição no título não como tomada de armas nem violência esporádica contra as autoridades, e sim como um desvio, que mediante o texto e no texto, se instaura com relação às ortodoxias do antigo regime; sendo assim não tem respostas para a apropriação da leitura desses livros proibidos pelos leitores, por isso deve entender-se como edição e sedição, não como edição, logo sedição, não há a relação de causa e conseqüência direta, mas possível.
Assim, a primeira grande pergunta a ser feita seria “quais são os livros proibidos e por que são proibidos?” É uma pergunta um tanto difícil de responder, pois não há nenhuma definição precisa, sendo a mais usual, “todos os livros que ferem a religião, o Estado e os costumes”. É preciso lembrar também que o Index católico não teve força de lei na França, pois não foi proclamado como édito pelo rei nem registrado nos parlamentos. Apesar de alguns esboços de listas, não houve nenhum que contivesse com clareza todos os livros proibidos.
Assim o livro não sofre uma separação rígida entre o legal e o ilegal, as definições, ou a falta de uma precisa, faz com que sejam muito próximos o que faz com que os Livreiros, sabendo dos perigos de tal comércio, usassem códigos e estratégias. A primeira e mais importante é codificar os livros nomeando os proibidos por “filosóficos”, artimanha utilizada pela maioria dos livreiros e que abarcava livros pornográficos, de cunho político e também os filosóficos. Outra medida importante e que se faz necessário entender, é que as grandes editoras não produzem as obras “filosóficas” elas trocam com pequenos editores que vêem nesse mercado uma maneira de fazer dinheiro, o que, entretanto, não lhes garante muita prosperidade, pois, mesmo comerciando por baixo dos panos, cedo ou tarde são presos e quando soltos retomam o negócio do zero.
Entendido como funciona a produção dos livros proibidos, ou impróprios, vamos entender como estes chegavam à França, pois não são produzidos lá, mas nos arredores (na Suíça, na Holanda, etc.), e são enviados aos ávidos leitores, à medida que são condenados, e é bem bom que sejam queimados pelos carrascos; assim, nesse momento, a procura aumenta consideravelmente. Mas, uma vez produzidos, trocados das pequenas para as grandes editoras, os livros proibidos chegam aos franceses através de expedientes diversos, sendo o mais interessante o “casamento”, onde folhas de livros ilegais são escondidas dentro dos livros legais, com o intuito de evita chamar atenção dos inspetores que também são aliciados com propinas. (p.33-34)
Ainda há aqueles que recorrem aos “seguros”, naturalmente utilizados pelos grandes livreiros que podiam arcar com os custos, que seria o “contrabando profissional” na gíria dos livreiros. Encarregam-se de levar os livros proibidos além da fronteira por uma porcentagem do valor dos livros, assim contratam camponeses que levam os livros nas costas e depositam em depósitos secretos de onde são reenviados para os locais como mercadoria nacional. Os custos são repassados até o comprador, se pegos os seguradores pagam a quantia dos livros apreendidos, e os camponeses vão para as galés.

8.1. MERCADO LITERÁRIO ILÍCITO.

Para se entender como funciona o mercado literário na França, é necessário explicar os três níveis de privilégios que existiam na França do Antigo Regime: os livros traziam um privilegio do Rei, pois todo livro passa pelo Rei e recebe uma carta de privilégio afirmando sua legalidade, qualidade e exclusividade da venda ao detentor da carta de privilégio; o segundo privilégio seria dos livreiros, pois recebem sua mestria do rei, ficando aptos a se tornarem membros de uma corporação oficial explorando o monopólio de seu ofício; o terceiro e último são os privilégios gozados pela comunidade dos livreiros, como a função de polícia que também exerciam nas visitas as tipografias onde impediam a publicação de textos não autorizados.
Por isso torna-se necessário que tudo o que inova seja produzido na ilegalidade, que fuja de Paris, da França, se aloje nas vizinhanças, e encontre nas províncias, inimigas dos livreiros de Paris, um refúgio seguro para a entrada das obras “filosóficas”. As grandes editoras, como a STN estudada por Darnton, necessitam saber o que os franceses querem ler, pois, como vimos, estão longe, dessa forma encontram três maneiras de “auferir a pressão” do mercado francês, seja através de agentes literários em paris, de representantes em viagem por toda França, ou de cartas recebidas dos livreiros do reino. As demandas, apesar de variarem de uma província para outra, não são tão diferentes, são apreciados romances leves, a literatura das luzes e interesse pelos assuntos do dia misturados a desafeições ao regime como o decaimento do Rei e dos ministros.

8.2 CICLOS DO MERCADO LITERÁRIO ILÍCITO

Em seu trabalho, Darnton procura articular três figuras pertinentes ao mercado literário ilegal, o vendedor ambulante, o dono de loja e o grande livreiro, propondo capítulos individuais através de estudos de casos, mas não nos deteremos neles, iremos às constatações, pois o espaço é curto. Cada qual encarna uma etapa da difusão do livro proibido, que vai das artérias aos capilares do circuito clandestino.
Assim, se começarmos com o livreiro médio, veremos que possuem má reputação, sendo as queixas constantes, afinal nada mais comum que ser enganado por um deles, pois fazem de tudo para não gastar dinheiro. Inventam várias desculpas uma vez que receberam os livros: atraso, a encomenda do concorrente chegou primeiro, as folhas estão estragadas, etc. Mesmo quando emitem uma letra de câmbio com prazo determinado, adiam o pagamento. Mas precisamos entender que eles negociam em uma atmosfera pesada, na qual o regateio se transforma em desconfiança e conchavo, especialmente quando se age por debaixo dos panos; basta lembrarmos das práticas da profissão e das condições econômicas que a sustentam, sempre muito próxima da falência.
Entretanto, tal situação dá margem a outros expedientes utilizados pelos pequenos lojistas, pois se não paga, o editor tende a colocá-los na justiça, o que evita pela origem da mercadoria e pela demora no julgamento. Mas quando o faz o pequeno livreiro se aproveita da ineficácia do sistema judiciário, separando-se por corpos e bens e fugindo para nunca mais se achado sem pagar o que deve. Essas coisas aconteciam porque o mercado dos livros proibidos era cheio de aventureiros, que engendravam mil táticas e estratégias para se abastecerem sem pagar suas encomendas, e dos fornecedores, que se esforçam a o Máximo para aumentar suas vendas.
Assim, obrigados a enviar pedidos a lugares e pessoas que nunca tinham visto, as editoras decidiram regular o comércio por um princípio que o protegerá da malevolência: a confiança. (p.101) Esta assume acepção quase técnica, funciona como uma cotação onde se dá confiança a medida que os negócios vão bem e paga-se em dia, e retira-se quando do contrário. Para saberem como vão os negócios de seus clientes, são enviados agentes, consultam-se amigos e familiares através de cartas. Estas funcionam como cartas de recomendação onde as “faculdades morais” também são analisadas e fazem parte da cotação da confiança. Assim, não basta ser rico, mas que se recomende também pelos bons costumes, pois se busca o cliente com “boa conduta”, pois nas “faculdades morais” é que se regula a confiança. Dessa forma, desenha-se o tipo ideal do bom livreiro: rico, mas honesto; empreendedor, mas não aventureiro; casado, mas não sobrecarregado com muitos filhos; instalado e reconhecido em sua comunidade; frugal, leal e assíduo no trabalho.
Outro sinal importante onde a confiança é firmada seria a assinatura, pois sem nunca ter visto o cliente, a assinatura é uma das poucas, se não única, maneira de reconhece-lo. A assinatura ainda possui duas funções, uma prática e a outra simbólica: a primeira refere-se a uma forma de proteção contra o risco de fraudes, pois só se dá valor a assinatura do cliente; a segunda funciona como um emblema, visto que corporifica não apenas seu crédito, mas também sua honra, seu prestigio, sua pessoa.
Dessa forma, vê-se que o mercado de livros no século XVIII baseia-se em valores tais como confiança, honra e solidez para manter o equilíbrio, mas choca-se com o mundo tal como se organiza ao redor do mercado. Este é desestabilizado garças as práticas utilizadas por aqueles que aplicam expedientes nos grandes livreiros ou editores, o que abala o equilíbrio do mercado baseado na confiança.
Estes livreiros do século XVIII podem ser divididos em dois grupos, compostos por pequenos varejistas e ambulantes, que ocupam as margens do mercado, de um lado, e os livreiros estabelecidos, que formam uma rede para proteger seus interesses, do outro. Dessa forma os livros proibidos tendem a escorrer para a margem do mercado, sendo negociados, principalmente, pelos pequenos, pois os grandes só negociam com o proibido quando o risco é muito pouco, e os médios quando os lucros estão muito baixos.
Por fim é importante lembrar que aqueles que negociavam com livros, os profissionais, não o faziam para difundir ideologias, mas para obter lucros, esta era sua visão de mundo. Assim fica fácil entender a citação de Darnton: “Os livreiros e editores estão persuadidos de que os livros participam de um sistema simples no qual a qualidade física e o conteúdo intelectual da mercadoria só devem ser privilegiados na medida em que aumentem os ganhos.” Dessa forma, Se os livreiros eram intermediários culturais, o eram por incutir os livros na rede livreira do antigo regime. Intermediário entre a oferta e a procura, o comercio livreiro, é o “sismógrafo” da literatura tal como esta evoluiu no mercado de idéias da França pré-revolucionária.



9. CONCLUSÃO

Entre todas as diversas formas de leitura que encontramos na França moderna, estas estão ligadas as condições materiais existentes nessa época. A difusão do livro com Gutenberg e seus tipos móveis, proporcionou novas práticas de leitura, da leitura em voz alta, a leitura solitária, em silêncio. Também podemos constatar tal afirmativa na oposição entre o campo e a cidade, entre o analfabetismo do primeiro, e as exigências provenientes de um público mais letrado no segundo.
Também não podemos esquecer que a própria leitura, como é possibilitada aos camponeses, não traz mudanças culturais significantes, ou mesmo das maneiras de sociabilidade. Seja pelo índice de analfabetismo expressivo no campo, seja pela dificuldade de alcance dos livros, em sua maioria almanaques. As imagens mentais que os livros criavam enriqueceram as relações dos homens do campo, mas não a mudaram, pois, não eram apenas receptores passivos do que liam ou ouviam, eram usuários e interpretes e ajudavam a dar forma ao que era produzido.
Dentro dessa perspectiva aberta pela Natalie Davis, podemos encontrar o livro como um ingrediente do universo revolucionário da França do século XVIII, e não como uma causa direta desta. Darnton lembra que os livreiros não eram movidos por motivos ideológicos, mas pelo lucro, dessa forma o comércio livreiro funcionava como um “sismógrafo” da literatura tal como esta evoluiu no mercado de idéias da França pré-revolucionária. O que nos leva a pensar que o descontentamento com o regime absolutista francês leva a busca pelos livros proibidos no antigo regime e não o oposto, assim o livro pode ter funcionado como catalisador da revolução, mas não como sua causa direta.
Por fim, encontramos a intervenção do editor nas obras que imprimiam e distribuíam, recortando, colando e resignificando, em certos momentos, as obras por motivos diversos, como a facilitação da apreensão pelo público analfabeto que teria acesso a obra apenas através da oralidade. Mas também as intervenções feitas nas obras tinham um sentido moralizador, principalmente nos cordéis como mostra Chartier, evitando termos e conteúdos que fossem opostos aos bons costumes e a religião, sendo o oposto dos livros veiculados principalmente por ambulantes. Nesse momento é importante lembrar que tais obras impróprias, são aquelas pertencentes ao comércio de livros ilegais, que também eram comercializados por mascates.



10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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• CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2° ed. Lisboa: Difel, 2002.
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• CHARTIER, Roger. Do codige ao monitor: A trajetória do escrito. Artigo. Instituto Estudos Avançados - Universidade de São Paulo. Tradução de Jean Briant. 1994.
• DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. Trad. de Myriam Campello. São Paulo: Cia. das letras, 1992.
• FICHTE, Johann Gottlieb. A doutrina da ciência de 1794 e outros escritos. 3ªed. São Paulo: Nova cultural, 1988. (Os pensadores).
• FISCHER, Steven R. História da leitura. Trad. de Claudia Freire. São Paulo: UNESP, 2006.
• FOISIL, Madeleine. A. Escrita do Foro Privado. In: História da Vida Privada: Da Renascença ao Século das Luzes. Vol. 3. Companhia das Letras. 3ª reimpressão. São Paulo. 1991.
• GOULEMOT, Jean Marie. As Práticas Literárias ou a Publicidade do Privado. In: História da Vida Privada: Da Renascença ao Século das Luzes. Vol. 3. Companhia das Letras. 3ª reimpressão. São Paulo. 1991.
• DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo – Sociedade e Cultura no Início da França Moderna. Oficinas da História, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

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