sábado, 31 de maio de 2008

SURUBIM: ONTEM E HOJE

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROBLEMAS DA HISTÓRIA DE PERNAMBUCO
PROFESSOR: SEVERINO VICENTE DA SILVA
ALUNO: JOSÉ ZITO JÚNIOR CASADO






SURUBIM: ONTEM E HOJE




RECIFE
2008



SURUBIM: ONTEM E HOJE

Localização

Surubim se localiza na mesorregião do Agreste Setentrional e microrregião do Alto Capibaribe, distando 124km do Recife, ligando-se à capital pela PE-90 (Surubim-Carpina) e pela BR 408 (Carpina-Recife). Limita-se ao norte com os municípios de Vertente do Lério e Casinhas; ao sul com Riacho das Almas e Cumaru; a leste com Orobó, Bom Jardim, João Alfredo e Salgadinho; e a oeste com Frei Miguelinho e Santa Maria do Cambucá. Está a 394m acima do nível do mar e situa-se numa zona de transição climática, observando-se o predomínio do clima semi-árido (Bsh), com vegetação típica de caatinga (xique-xique, mandacaru, etc), encontrando-se as cactáceas e as bromeliáceas. A temperatura média anual é aproximadamente 24,7º C e precipitação medida em torno de 692,6 mm.


Surubim está contido na bacia hidrográfica do Capibaribe, sendo abastecido, após vários anos enfrentando o problema da falta d’água dado o crescimento da população e os períodos de estiagem, pela barragem de Jucazinho, obra orçada em torno de 60 milhões de reais, beneficiando também a população rural e os pequenos e médios produtores.


O nome

O nome “surubim” é proveniente, segundo reza a tradição, do nome dado a um boi, admirado por todos por sua força e valentia, da primeira fazenda que se instalou na região. Foi assim denominado por ser pintado da mesma forma que o peixe de mesmo nome. Diz-se que certo dia, uma onça entrou no curral e devorou o boi Surubim, para lamentação geral. A notícia se espalhou e passaram a chamar Fazenda do Boi Surubim. O nome ganhou força quando da criação, em 6 de junho de 1881, da freguesia de São José do Surubim, ficando posteriormente somente freguesia de Surubim.

Ocupação

Podemos dizer que a ocupação de Surubim ocorreu da mesma maneira e pelas mesmas razões que a ocupação do Agreste. Concomitantemente ao estabelecimento da indústria açucareira, nos séculos XVI e XVII, desenvolveram-se atividades paralelas como, por exemplo, a instalação de serrarias para o acondicionamento do açúcar e do próprio fabrico; a pecuária, dada a necessidade de animais para o transporte da cana e do açúcar e para os trabalhos da moagem; e, conseqüentemente, o aparecimento da cultura de subsistência nas circunvizinhanças. A partir de então, as fazendas de gado foram surgindo nos sertões – visto que a boiada precisava de espaço – ao longo dos rios, com o estabelecimento dos “currais de gado”. Assim,
o roteiro que utilizava o rio Capibaribe buscava as terras setentrionais da capitania de Pernambuco, penetrando nas meridionais da de Itamaracá, atravessando terras da Paraíba até encontrar as nascentes do Pajeú. Ao longo desse roteiro, fundavam-se não só roteiros, mas aproveitando a vastidão da terra inculta, coberta de pastagens nativas, longe das plantações de cana-de-açúcar.[1]

De fato, como afirma Andrade, o espaço agrestino era propício ao desenvolvimento das atividades pecuárias (...) Além disso, as dificuldades estabelecidas pelo relevo fizeram dessa área, um local de auto-abastecimento de produtos alimentícios.[2] Dessa forma, ratifica-se a hipótese acima de que a ocupação do agreste se deu por duas atividades: a pecuária e a cultura de subsistência.
Portanto, não é à toa que Surubim é conhecido como “Capital da Vaquejada” e cidade referência na exposição de animais, uma vez que tem em sua origem e formação a presença do elemento pecuário.
O primeiro núcleo populacional de que se tem conhecimento na região que hoje chamamos de Surubim se estabeleceu em 1864, quando Lourenço Ramos da Costa fundou uma fazenda de gado e aí construiu uma casa de oração dedicada a São José – tendo sido elevada à Paróquia em 1881, decretado pelo bispo de Olinda D. Manoel dos Santos Pereira, atendendo às solicitações do coronel Dídimo Carneiro –, desenvolvendo-se a partir de então o povoamento efetivo da região. Construiu-se a Matriz de São José, a partir da Casa de Oração, incentivada pelo padre Augusto Cassuelti, mas foi demolida em 1963 para construção de uma nova igreja, pelo Monsenhor Ferreira Lima. Foi sagrada em 1965 com a presença do Núncio Apostólico. Atualmente, a Paróquia pertence à diocese de Nazaré da Mata.
A Lei Municipal nº 03, de 27 de abril de 1893, criou o distrito de Surubim, pertencente a Bom Jardim – este pertencia ao município de Limoeiro, tendo sido desmembrado em 1870, criando-se a Vila de Bom Jardim. Posteriormente, Surubim foi elevado à categoria de vila, em 1909, pela Lei Estadual nº 991, de 01 de julho. Sua emancipação ocorreu em 11 de setembro de 1928, desmembrando-se do município de Bom Jardim. Na década de 90, os distritos de Vertente do Lério (1992) e Casinhas (1996) que outrora pertenciam a Surubim, conseguiram sua emancipação, fazendo com que este município perdesse grande parte de sua área territorial, que se reduziu de 539 km² para 285 km².

Fragmentos da política

O primeiro prefeito eleito de Surubim foi o coronel Dídimo Carneiro da Cunha, que gozava de grande reputação por ter liderado o processo de emancipação política, além de desenvolver o distrito de Surubim quando era prefeito de Bom Jardim.[3] Não terminou o mandato, uma vez que era contrário a Vargas, e foi deposto pelos partidários deste “em nome da revolução” (de 1930).
Um dos prefeitos que mais se destacou foi Nelson Barbosa, sobretudo por ter dado grande impulso à urbanização da cidade, além de ter sido eleito deputado estadual por duas vezes. Muitas construções foram feitas durante o seu mandato: Hotel Municipal, prefeitura, mercado público, algumas escolas. Publicou, em 1979, o livro Recordações de Minha Terra e minha gente, onde é possível conhecer um pouco da história política, econômica e social do município, mesmo antes da emancipação.
Outra figura de destaque foi o Monsenhor Luís Ferreira Lima (prefeito de Surubim por dois mandatos) o qual começou com vários trabalhos assistenciais sem ainda ocupar cargos públicos, como a construção da Maternidade Nossa Senhora do Bom Despacho, Hospital São Luís, Posto de Saúde Mário Pinott. Sem falar na liderança que exercia junto à população humilde.
Citemos também o Ex-Senador Antônio Farias, que foi vereador em Surubim, deputado estadual, federal e prefeito do Recife. Fazia parte da chamada oligarquia algodoeira, que predominou no poder ao longo de toda a história de Surubim. Segundo Medeiros,
a hegemonia dessa oligarquia [algodeira] perderá a sua continuidade com a eleição de Flávio Nóbrega [atual prefeito, filiado ao PT] para prefeito nas eleições municipais de 2002. Vale ressaltar que, de pronto a mudança não será cristalina, pois com o correr do tempo adesões de momento sinalizaram para um passado não muito distante marcado pelo jogo de interesse de líderes militantes da oligarquia a qual nos referimos.[4]


Bandeira e escudo

A bandeira do município foi instituída em 1969, pelo então prefeito o Monsenhor Ferreira Lima, tendo sido idealizada por Osvaldo Leal e desenhada por Severino Apolinário de Lucena Filho. O verde representa a vegetação, a esperança; o branco, a paz; o azul seria o ponto de chegada de todos os sonhos e planos; a cruz como sinal de religiosidade e sacrifício da luta cotidiana; e a estrela como caminho a seguir, utopia.
O escudo foi sancionado em 1990, pelo então prefeito Humberto da Mota Barbosa, e desenhado por Romero Silva Melo. É constituído por uma faixa, em baixo, com a data de emancipação do município; ramos de milho e algodão, expressando a vocação agrícola; além de um boi – haja vista a importância da pecuária desde o início da povoação, até hoje – e uma paisagem característica da zona rural, com cercas, etc.


Evandro Cavalcanti e reforma agrária

Um fato histórico importante, ainda hoje comentado pela população, foi o assassinato do então vereador Evandro Cavalcanti, advogado do chamado Pólo Sindical, que reunia 16 sindicatos de trabalhadores rurais de várias cidades, e defendia a reforma agrária, a contragosto dos grandes latifundiários. No dia 21 de fevereiro de 1987, Evandro foi brutalmente assassinado, com oito tiros à queima roupa, quando se dirigia ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais – como sempre costumava fazer aos sábados, atendendo gratuitamente aos camponeses –, acompanhado da mulher e da filha de 11 anos. Poucos dias antes de morrer, como que prevendo o que aconteceria, Evandro fez o seguinte pronunciamento na Câmara Municipal:

Até quando teremos que conviver com tanta violência, tanto barbarismo, com tanta impunidade? Os latifundiários são cada dia mais ousados. Do privilégio de continuarem senhores do baraço e cutelo de grandes extensões de terras, mesmo a custo da miséria e exploração de doze milhões de brasileiros sem-terra, não querem abrir mão, mesmo que para isso afrontem a lei e as autoridades. O movimento sindical dos trabalhadores rurais e aqueles que o apóiam não podem e não suportam mais verem aumentar a cada dia a lista de mártires da terra. Reforma agrária já. Cadeia para os assassinos.[5]

Por ocasião da missa de sétimo da morte, Dom Hélder Câmara assim comentou a respeito de Evandro: “Evandro morreu porque defendia os trabalhadores. Morreu, não por ódio; morreu por amor aos trabalhadores...”[6]

Na verdade, a luta pela reforma agrária já vinha sendo intensa, inicialmente com as Ligas Camponesas organizando passeatas e protestos pelas ruas do município. A luta formalizar-se-ia com a criação do Sindicato dos Trabalhadores rurais, a partir da década de 60. De fato, esses pequenos produtores eram uma ameaça para os proprietários de terra, pela própria concorrência; por conseguinte, estes passaram a não mais ceder terras a arrendatários, agregados, etc. Sem oportunidade de trabalho, restou a essas pessoas migrar para os grandes centros, com destaque para São Paulo, como até hoje acontece!

Algodão

Quanto à agricultura, Surubim sempre se destacou pela produção algodoeira. Para se ter uma idéia, haviam instaladas cinco usinas de beneficiamento de algodão, que chegavam exportar lã até para a Europa. Isso até meados da década de 70. O município foi perdendo importância na agricultura, desde que a praga do bicudo atingiu a produção algodoeira e a invasão da tecnologia passou a instituir o império da fibra sintética.

Educação

Com relação à educação, temos mais de 13 mil alunos matriculados nos ensino Fundamental e Médio, segundo dados do IBGE 2007. Destacamos, além dos colégios Nossa Senhora do Amparo[7] e do Marista Pio XII[8], a Escola Estadual Severino Farias[9], estabelecida na década de 70, que chegou a ganhar, em 2005, o Prêmio Nacional de Referência em Gestão Escolar, concedido pelo Conselho Nacional de Educação, concorrendo com mais de duas mil instituições de ensino em todo o Brasil.
Antes do colégio do Amparo ter sido criado
a formação educacional dos munícipes processava-se das seguintes formas: individualmente em casa, sendo o ensino ministrado pelos próprios pais; e/ou em escolas onde uma única professora era responsável por toda a formação dos indivíduos para a presteza do exame admissional.(ANDRADE, 2005, p. 32)

Atualmente, é destaque nos jornais um jovem de 17 anos, André Gentil Guerra Agostinho, natural de Surubim, que foi classificado, com mais quatro estudantes brasileiros, para a Olimpíada Mundial de Física – de 20 a 29 de julho –, em Hanói, no Vietnã. Apesar de ter estudado o Ensino Médio no Recife, esse fato demonstra que Surubim possui uma estrutura educacional com certa qualidade; sobretudo, quando comparado a outros municípios. Segundo o estudo feito por Andrade,
os serviços educacionais em Surubim têm destaque na centralização da região a qual esta cidade está inserida, representando principalmente nas unidades educacionais do Colégio Nossa Senhora do Amparo e Colégio Marista Pio XII, onde ambos os estabelecimentos recebem alunos de outros municípios para usufruírem de seus serviços. (ANDRADE, 2005, p. 101)


Casa-Grande

Um registro cultural do qual Surubim é privilegiado é de uma construção, uma Casa-Grande, do final do século XVII, datação atestada pela FIAM, tendo sido tombada pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, em 1980. Segundo estudos da FIAM, existiam nessa Casa-Grande da Fazenda Cachoeira do Taepe dependências construídas com o intuito de abrigar escravos, mostrando que estes eram utilizados também na agricultura, sobretudo da cultura do algodão predominante na região.[10] Segundo Barbosa, baseada nos escritos de um antigo proprietário,
a Casa-Grande foi construída no final do século XVII, quando os portugueses desbravando o interior de Pernambuco, subiram pelo rio Capibaribe à procura de terras para criatório de gado e para agricultura. Andando 120 quilômetros rio acima, encontraram o riacho do Taépe, afluente do Capibaribe. Seguindo uns seis quilômetros depararam-se com terras baixas, grandes matas e uma bonita cachoeira. Agradando-se do local, decidiram construir uma fazenda. De volta ao Recife, compraram escravos e tudo o que foi necessário para começar a fazenda de criação e cultivo e a construção do açude e da Casa-Grande, até hoje é conhecida como Casa-Grande da Fazenda Cachoeira do Taépe.(BARBOSA, 1995, p. 2)



Manifestações artísticas

Na literatura, destaca-se a figura do doutor José Nivaldo Barbosa de Sousa. Segundo Costa Porto,
romancista do melhor metal, José Nivaldo traz para as letras aquelas tônicas do menino nascido no campo, do fazendeiro do médico do interior – de que tão justificadamente se ufana: a marca da terra, o sentido local, o cheiro da terra virgem, fazendo da gente da roça a matéria-prima da sua bagagem literária, a ganga donde extrai os veios ricos de sua obra de intelectual e homem de letras... Um romance, em suma, que, deliciando como manifestação da arte, na palavra escrita, do mesmo modo instrui e se oferece como documentário objetivo, abrindo caminhos para uma visão global do processo político de um povo, empenhado, por vezes em vão, em encontrar-se, encontrando seus rumos e a realização de seus destinos heróicos.[11]
Na música, temos como destaque a figura de Capiba, filho de um mestre de bandas, tendo, assim, estudado música desde muito cedo. “Capiba”, apelido que na gíria local designava “jumento” e que se estendia a toda família, inaugurado pelo avô que era baixinho e teimoso. Compôs sua primeira música aos oito anos e gravou seu primeiro disco em 1925, com a valsa Meu Destino. Após ter ganho um concurso no Rio de Janeiro, em 1929, com o tango Flor das Ingratas, volta ao Recife uma vez que tinha sido aprovado num concurso para escriturário do Banco do Brasil. Aqui conclui o seu curso de Direito. Capiba fundou a Jazz Band Acadêmica – foi nesse momento que compôs seu primeiro frevo, É de amargar, em 1934, que lhe deu o prêmio campeão do concurso de músicas de carnaval do Recife – e, posteriormente, a Bando Acadêmico, reunindo alunos dos mais diversos cursos – Medicina, Direito, etc. Na década de 50, passa a estudar harmonia e composição com o maestro Guerra Peixe. Já na década de 70, dedica-se à composição de peças para o movimento armorial, ganhando destaque a música Toada em Desafio, gravada pelo Quinteto Armorial, em 1975, e Sem Lei nem Rei, gravada, em 1974, pela Orquestra Armorial de Câmara. Compôs também maracatus, mas ficou conhecido mesmo como autor de frevos. Teve composições gravadas por intérpretes como Nelson Gonçalves que, em 1943, gravou o sucesso Maria Bethânia. Em parceria com Carlos Pena Filho, compôs o samba A mesma rosa amarela, um dos seus maiores sucessos.
Merece destaque também a figura de Juarez Araújo, maestro responsável por orquestrar grande parte da produção oriunda da modernização do frevo, na década de 70.[12]
Depois d’Os meigos, grupo de jovens o qual tocava rock, influenciado pela Jovem Guarda, e que caiu nas graças da população surubinense, fazendo shows nos diversos clubes da cidade, tendo se desfeito por que cada integrante resolveu seguir destinos diferentes da música, surge, atualmente, a banda Hanagorik. Para se ter uma idéia da sua importância, em 1999, no festival Abril Pro Rock, abriu o show da consagrada Sepultura, além de ter feito algumas excursões pela Europa.
Falemos da vaquejada, o esporte folclórico praticado há muito em Surubim. Realiza-se na segunda semana de setembro no parque João Galdino e atrai vaqueiros de todo o Estado. Na verdade a sua origem está ligada à captura do boi, que era marcado e solto, já que não existiam cercas. Então, os vaqueiros apanhavam os bois através de laços de corda. A competição começou quando algum deles se destacava por prender um boi mais agressivo. A vaquejada de Surubim ficou imortalizada na letra do Quinteto Violado, que se tornou um hino à cidade, tendo uma verdadeira veneração pelos vaqueiros que ficam de pé quando de sua execução. Abaixo, a canção Vaquejada gravada pelo Quinteto Violado em 1973, no LP Berra Boi, composta por Toinho Alves, Luciano Pimentel e Marcelo Melo:

Viola camarada
Prepara o seu cantar
E conta prá essa gente
Aquela vaquejada
Que a cidade em festa
Viveu sua história
Que nem sei lembrar
Contar, falar, lembrar

Eia! Vaqueiro
Sua vez e sua hora
Na derrubada do boi
Ta escrito a sua glória

Doutor, venha ver Surubim
A rua principal Toda embandeirada
É festa em Surubim
É dia de vaquejada

Na pintura, temos como grande nome Fernando Guerra, aluno de Abelardo da Hora. Começou sua vida profissional assim que passou a freqüentar a Escola de Belas Artes do Recife, sendo incentivado por Lula Cardoso Ayres. Guerra ficou conhecido por seus “quadros-de-bolso”, tendo participado de vários salões em Recife, Olinda, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, etc, ganhando vários prêmios, como o do XVIII Salão do Museu do Estado, aqui em Pernambuco. Foi também ilustrador do Jornal do Commercio e de várias revistas de São Paulo e do Rio, além de ter fundado, junto com outros artistas, a Associação dos Artistas Plásticos de Pernambuco, no ano de 1980.

O hino de Surubim tem letra de Jessé Cabral e melodia de Juarez Assis de Araújo:

Surubim, meu Surubim
Por que te chamam assim?
Disse o poeta no verso
Terra santa, consagrada
Pelas festas, vaquejada
Outra igual quem foi que viu?
Terra de filhos ilustres
Em, prosa, em verso cantada
Surubim dos cereais,
Terra dos cajueirais,
Terra dos algodoais.
Terra de misses faceiras
Meninas belas brejeiras
Meu Surubim folclorista
Do pastoril, do “São João”,
Do mamulengo afamado
Do forró, “coco”, “torrado”,
Surubim do coração.
Terra do bumba meu boi
Quem foi que disse, quem foi?
Foi meu boi “Surubim”
Que me falou ao nascer:
“De minha infância querida”
Em Surubim vou viver
Até um dia morrer...


Por fim, destaquemos o folclore surubinense a partir do excelente livro de Mariza de Surubim, onde conta a história do município baseando-se, sobretudo, na boca do povo. Citemos duas lendas, que ainda hoje faz parte do imaginário da população. A primeira é a de Comadre Fulozinha:
- Conte aquela história de Comadre Fulorzinha!
- Cale a boa menina, não se brinca com coisa séria.
E Severina Joana, de Capoeira do Milho, cantora de novenas e indelenças, se benze e chama pela Virgem Maria, “mode espantar os maus espíritos”.

Contam os camponeses mais antigos, que Comadre Fulorzinha é uma mulher pequenina, de cabelos loiros quase arrastando pelo chão, que gosta de fumo, dá pisa em cachorro, faz trança nas crinas dos cavalos e assobia pelo meio do mato fazendo “homé macho corré e treme de medo”.(BARBOSA, 1995, 70-71)

A segunda é a estória das botijas, que eram uma espécie de vaso cilíndrico, onde as pessoas guardavam sua “herança”, dinheiro em moedas, geralmente, já que não havia uma rede bancária como se tem hoje. Muitas vezes acontecia do “tesouro” ser uma enorme quantidade... de níqueis enferrujados apenas. Diz a crendice popular que

muitas vezes a “alma” [do falecido que havia deixado a botija] aparecia em sonhos e entregava a botija sem muitas complicações: ponto tal, debaixo daquela árvore, que fica atrás daquela casa. Outras vezes indicava como referência uma pedra, mas a pessoa devia andar dez passos à frente, trinta à esquerda, até que, obedecendo a uma série de exigências, encontrasse o lugar para cavar.
(...)
Tudo se fazia no maior segredo. Quem sonhasse não podia contar pra ninguém, senão a botija desaparecia. Devia cavar sozinho e de noite. Dizem que na hora de arrancar apareciam bichos estranhos, cavalos em disparada, diabos e outras assombrações para desviar a atenção do afortunado. Muita gente “sonhou” com botija, mas não teve coragem de desenterrar. Outros desistiram no meio do caminho, com medo das aparições.
Conversa daqui, conversa de acolá, e as estórias vão surgindo, todas verdadeiras, segundo seus contadores. (BARBOSA, 1995, 81)

Palavras finais

Procuramos mostrar um pouco do município de Surubim, a partir das mais diversas dimensões, passando pela evolução política até as crendices populares. No que tange à sua importância, podemos constatar que já a partir da década de 70 se apresentava como um centro regional de atração, e com o passar do tempo cristalizou-se como sendo uma cidade de porte médio. (ANDRADE, 2005, p. 74) Atualmente, Surubim atende a cerca de 11 municípios da região, quanto ao comércio e à prestação de serviços, sobretudo o serviço bancário, o que demonstra sua relevância frente às cidades vizinhas. Constata-se hoje enorme crescimento urbano no município, com grande número construções de casas no seu entorno. Entretanto, alertamos para os problemas enfrentados pelas metrópoles e que são inerentes a esse processo: falta de saneamento para a população dos bairros mais afastados, precariedade no atendimento à saúde, uma vez que a população vem aumentando, etc.
Concluímos com uma homenagem a Surubim, um trecho da música Marcha de Surubim, tendo sido escrita por Marcos Accioly e musicada por Capiba:

Verão é pedra de luz amarala
No inverno a chuva é verde no capim
Cidades das cidades, Surubim
Colhi aboio e moça na janela
Onça-de-agreste, minha cidadela
Tens uma estrela de espora na garganta
Que o tempo ao espaço se levanta
Se um destino é de encontro ao teu destino
Pois a canção de paz é o mesmo hino
Que no peito da guerra o povo canta.[13]



















BIBLIOGRAFIA


ANDRADE, Gevson Silva. Análise da Funcionalidade Urbana de Surubim-PE: um olhar em sua função enquanto cidade média. Recife: Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco, 2005.

BARBOSA, Mariza Paula, Surubim pela boca do povo. Museu Histórico de Surubim: Surubim, 1995.

BARBOSA, Nelson. Recordações de minha vida, minha terra. Surubim, s/ ed., 1979.
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO. FUNDAÇÃO DE INFORMAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO DE PERNAMBUCO – FIDEPE. Monografias Municipais, 11. Surubim. Recife, 1982.

Jornal Luta Popular, Órgão de Divulgação do PMDB em Surubim, Fevereiro de 1988, Nº 09.

Jornal Tribuna Regional, Ano I, Número 07, Surubim, Fevereiro de 2002.

MEDEIROS, Luiz Antonio. Surubim: a história de todos os tempos. 3ª edição revisada e atualizada. Surubim-PE, 2007.





Sites:

< http://pt.wikipedia.org/wiki/Surubim>, acesso em 11/05/08.
, acesso em 11/05/08.




[1] GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO. FUNDAÇÃO DE INFORMAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO DE PERNAMBUCO – FIDEPE. Monografias Municipais, 11. Surubim. Recife, 1982, p. 20.
[2] ANDRADE, Gevson Silva. Análise da Funcionalidade Urbana de Surubim-PE: um olhar em sua função enquanto cidade média. Recife: Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 21.
[3] Na verdade, por causa do destaque que a vila de Surubim vinha tendo e sendo Cel. Dídimo de lá, seu nome foi indicado para prefeitura de Bom Jardim, conseguindo ser eleito anos antes da emancipação da vila.
[4] MEDEIROS, Luiz Antonio. Surubim: a história de todos os tempos. 3ª edição revisada e atualizada. Surubim-PE, 2007, p. 51.
[5] Jornal Tribuna Regional, Ano I, Número 07, Surubim, Fevereiro de 2002, p. 4.
[6] Jornal Luta Popular, Órgão de Divulgação do PMDB em Surubim, Fevereiro de 1988, Nº 9, Capa.
[7] Fundado pelas irmãs franciscanas, que chegaram em Surubim dois dias depois de sua emancipação, vindas do Rio de Janeiro. A Casa das irmãs foi inaugurada em julho de 1929, sendo que em setembro já começava a receber as primeiras alunas. Em 1932, as irmãs receberam do então prefeito Dídimo Carneiro um terreno para a construção de um novo prédio. Posteriormente, a escola passou a receber alunos de ambos os sexos. Hoje é uma escola de referência, com um prédio central, uma capela, uma quadra de esportes, etc.
[8] Fundado em 1960, tendo como principais fundadores o Monsenhor Ferreira Lima e o Irmão Bernardo Aguiar (primeiro diretor da escola).
[9] A ESF originou-se do desmembramento do Colégio Estadual Pio XII que era mantido por um convênio entre a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco e os Irmãos Maristas. Em 1975, com o fim deste convênio, passou a existir duas escolas distintas: uma da rede privada e outra de rede pública.
[10] Segundo a Fundação de Desenvolvimento Municipal/FIAM, a Casa-Grande apresenta algumas peculiaridades bem interessantes, além do fato de tratar-se de uma edificação totalmente inédita e desconhecida, até a elaboração do Plano de Preservação dos Sítios Históricos do Interior/PPSHI. Uma dessas peculiaridades é a já referida semelhança entre as duas habitações conjugadas que formam, da parte externa, uma única moradia. Uma outra diz respeito à presença, ainda visível no soalho das duas salas, de alçapões destinados à remessa de alimentos aos escravos que cumpriam castigos nos cômodos do pavimento inferior, hoje funcionando como depósito. (...) Uma terceira peculiaridade é a existência, tambem bastante visível, de trincheiras para a passagem de armas (por ocasião dos ataques externos) em várias alturas de todas as janelas e portas que se comunicam com o exterior. Essas duas últimas ocorrências atestam a real antiguidade da casa, provando ter sido a sua construção efetuada, ao que tudo indica, início do século XVII. (BARBOSA, Mariza Paula, Surubim pela boca do povo. Museu Histórico de Surubim: Surubim, 1995, p.22)
[11] FUNDAÇÃO DE INFORMAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO DE PERNAMBUCO – FIDEPE. Monografias Municipais, 11. Surubim. Recife, 1982, p. 53-56.
[12] Para saber mais sobre a modernização do frevo, cf. ROSENBERG, Carlos (org.) Pernambuco: 5 décadas de arte. Quadro Publicidade e Design Ltda: Recife, 2003.
[13] BARBOSA, 1995, p. 37.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

BRINCADEIRAS E FESTAS JUNINAS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História







Brincadeiras e Festas Juninas







Aluna: Suzana Rebeca da Silva Lima
Professor: Severino Vicente










Recife, 28 de maio de 2008


Apresentação

No dizer de Câmara Cascudo (2001), as festas juninas são ‘(...) ocasião de reencontro de amigos e parentes (...) são bastante concorridas. Fogueiras e casamentos caipiras, as quadrilhas, as leituras de sorte, sempre acompanhadas das comidas e bebidas típicas’. Este trabalho pretende abordar um pouco da história e de alguns destes elementos abordados por Cascudo, presentes nas festas do chamado Ciclo Junino.





Índice
Introdução

Parte I: Festas Juninas

I.I. Os três santos de junho-------------------------------------------------------------------
I.I.I Santo Antônio------------------------------------------------------------------------------
I.I.II. São João----------------------------------------------------------------------------------
I.I.III. São Pedro-------------------------------------------------------------------------------
I.II. Comidas Típicas----------------------------------------------------------------------------
I.III. Músicas-----------------------------------------------------------------------------------
I.IV. Danças------------------------------------------------------------------------------------
I.IV.I. Coco-------------------------------------------------------------------------------------
I.IV.II Quadrilha------------------------------------------------------------------------------


Parte II: Brincadeiras Juninas

II. I. Balões-------------------------------------------------------------------------------------
II.II. Fogos de artifício--------------------------------------------------------------------------
II.III. Adivinhações e Simpatias----------------------------------------------------------------












Introdução

No mês de junho, são comemoradas algumas das festas mais populares e tradicionais do catolicismo e da tradição brasileira, especialmente na região do Nordeste. As chamadas festas do Ciclo Junino prestam homenagens aos três santos de junho: Santo Antônio, celebrado no dia 13º do mês; São João Batista, no dia 24 e São Pedro, no dia 29. Estas três festas são de natureza agrária e remontam à tradição do Velho Mundo.
Nas regiões da África, Ásia e Europa os povos pagãos praticavam ritos para festejar as divindades que protegiam a colheita e afastavam ‘(...) os demônios da esterilidade, da estiagem e da miséria’ (MONTEIRO, 2001). O fogo era o ‘elemento afugentador’ desses ‘demônios’. Nos ritos de fertilidade, também estava presente a idéia da fertilidade humana. Tais rituais ocorriam por ocasião do solstício de verão, entre os dias 22 e 23 de junho e marcavam também o início da colheita dos cereais.
Esses ritos ‘(...) estão incorporados nos vários sistemas religiosos da atualidade’ (TRIGUEIRO, 1995), assim como tantas outras festas consideradas como profanas que acabaram por ser congregadas à tradição cristã. Na região Centro-sul do Brasil, as festas juninas não estão ligadas ao cerimonial agrícola propriamente dito. Constituem-se apenas de festejos em comemoração ao devocionário dos santos de junho. Na região Nordeste, entretanto, estas festas estão diretamente ligadas ao início da colheita do milho e é exatamente sobre ele que se concentra toda a culinária junina.
As festas de junho são bastante populares no Nordeste. Suas tradições, suas histórias, sua culinária e suas brincadeiras são, por muitos, esperadas com muita ansiedade.






FESTAS JUNINAS



I.I. Os três santos de junho

A devoção aos três santos celebrados no mês de junho remonta à tradição portuguesa. Com a colonização no Brasil, o costume de festejar os santos de junho, em Portugal, integrou-se a costumes e práticas ‘(...) de tradições indígenas e estranhas, de outra origem, que não portuguesa. Esse jeito que tomou, manifesta nitidamente o esteio principal da (...) formação (...) do folclore brasileiro desses santos e dessas festas (Chaves apud BETTENCOURT, 1947). Esta característica religiosa presente nos festejos juninos confere-lhes o sabor de misticismo e eternidade.

I.I.I. Santo Antônio

Para a cultura popular, pouco importa que o frade português, cujo nome de registro é Fernando de Bulhões, tenha sido um grande pregador e professor de teologia de diversas universidades situadas na Europa. Para Bettencourt (op. Cit.), o povo o quer ‘seu camarada’, a quem as moças pedem, ansiosamente, por um bom casamento:

Santo Antonio me case já,
Enquanto sou moça e linda,
Porque o milho colhido tarde
Não dá palha nem espiga!

Santo Antonio que eu tenho
É trançado de cipó
Muitas vezes a gente gosta
Mas amá é uma vez só.

Este segundo verso dedicado a Santo Antônio refere-se ao costume que muitas mulheres têm, de amarrar uma fita no corpo do santo, rezando quadrinhas, com muita fé e esperança. Por ser conhecido como ‘o santo casamenteiro’, Santo Antônio é comumente sujeitado aos mais variados sacrifícios, a fim de atender à petição das mulheres desesperadas por um marido. Dentre estes sacrifícios, podemos citar:
Tirar o menino Jesus de seus braços;
Colocar o santo de cabeça para baixo;
Atar nele uma corda e jogá-lo no poço;
Colocar uma moeda pregada com cera sobre a tonsura.
Santo Antônio não é apenas buscado pelas moças sequiosas por um bom casamento. Na tradição brasileira, o santo aparece ligado às causas do amor em geral:

O Santo Antônio que eu tenho
É feito de nó de pinho;
Da mulher eu gosto muito.
Da sogra ...nem um pouquinho.

Santo Antônio pequenino
Mansador de burro brabo,
Vem amansar minha sogra, que é levada do diabo.

E ainda:

Me apeguei com Santo Antônio,
P’ra casa c’uma crioula:
As alma ganha uma saia
Santo Antônio uma ciroula.

Meu Santo Antônio adorado
Acabô de me conta
Quem em amô não há pecado
Que pecado é não amá.

Santo Antônio é também conhecido como ‘o santo milagreiro’, o que faz achar as coisas perdidas:
Quem milagres quer achar
Contra os males e o demônio,
Busca logo Santo Antônio
Que aí os há de encontrar

Ainda com relação à figura de Santo Antônio como milagreiro, temos a seguinte trezena:
Se queres milagres
Implora confiante
De Antônio o favor:
Seu braço é tão forte
Que do erro e da morte
Destrói o furor...

O dia dedicado ao santo é o dia 13 de junho, que é a data de seu falecimento, em 1231. Nos treze primeiros dias do mês, realizam-se as trezenas e outras rezas para implorar milagres ou agradecer pelos pedidos atendidos.
I.I.II. São João
Das noites dedicadas aos festejos juninos, a noite de São João é, para muitos, a mais festejada e esperada. Tal é seu vislumbre que teve ‘(...) o poder de dar ao mês seu nome (mês de São João) e qualificar de ‘joaninas’ as festas realizadas no decurso de seus trinta dias’ (Wanderley apud BETTENCOURT, 1947).
A tradição pagã das fogueiras que espantam a estiagem e a seca mantém-se, porém sob a égide cristã. As fogueiras são acesas à porta das casas na noite da véspera do dia consagrado a São João, o que relembra a fogueira acesa por Isabel – mãe de João Batista – para avisar a sua prima, Maria, do nascimento de seu filho.
A noite de São João é a mais misteriosa e cheia de lendas do Ciclo Junino: acredita-se que a fogueira de São João ‘(...) pode ser atravessada com os pés descalços, sem perigo de serem queimados, tendo o caminhante muita fé no santo’ (BETTENCOURT, op. Cit.); também na véspera do dia joanino era costume rasgar-se a casca da mangueira para que o seu caule engrossasse; na mesma ocasião, acredita-se que plantando-se alho, no dia seguinte já amanhecem brotados; as pessoas também podem colher água no rio, ao raiar do dia do santo. Esta água, diz a tradição popular, serve para espantar baratas e percevejos; também as moças - a fim de deixar seus cabelos mais belos e de rápido crescimento - cortam as suas pontas na madrugada do referido dia.
Outra tradição relatada por Bettencourt em meados do século XX é a cerimônia que simboliza o batismo dos gentios pelo filho da Santa Isabel. O ritual é conhecido como ‘banho de cheiro’ e é mais comum em Belém e Manaus. O banho é preparado com ervas aromáticas e, acredita-se, pode trazer sorte, restituir a felicidade aqueles que a perderam e ‘lavar o mal’ de todo aquele que tomar o banho.
Há, nas comemorações joaninas, uma série de hábitos e crenças que não se sabe precisar de quando datam, mas que são repetidos, ano após ano. A fogueira, por exemplo, é pulada no afã de se tornar primo, madrinha, padrinho, irmão ou qualquer outro grau de parentesco com alguma pessoa (BETTENCOURT, op. Cit.). Existe também outro costume, o da troca de presentes, ou, como se costuma falar nas regiões interioranas, o de ‘pedir as festas’.
A noite de São João é lembrada pelas suas danças, fogueiras, comidas e pela quantidade de pessoas a brincar, sorrir, cantar e pular, como mostra a música que Bento Mossurunga compôs para celebrar o dia do santo:
É noite de São João
Em torno de uma fogueira
A caipirada faceira
Dança o fandango e o baião

Sapeca, estala o pinhão.
Ao lado, numa braseira
Ferve a água na chaleira
Para o mate chimarrão

No meio de tanta gente
Que pula e ri de contente
Somente a Rita, somente,
Não se diverte, a pensar

No pobre do namorado
Seu caboclo bem amado
Que lhe roubara o malvado
Sorteio militar.[1]

I.I. II. São Pedro

A noite de São Pedro também é festejada em junho, no vigésimo nono dia. Porém, em virtude dos festejos anteriores, diz-se que as pessoas já não têm resistência para muita folia. Assim, o dia 29 é conhecido muito mais pela sua solenidade do que pelas festividades.
Encontramos poucos versos, quadrinhas, músicas ou danças dedicadas a São Pedro, por ocasião das festas juninas. Este santo é reverenciado como um personagem humilde e abstêmio e é festejado principalmente pelos marítimos e pescadores - uma vez que o próprio Pedro tenha sido um – e pelas viúvas, por também ter sido viúvo. No Nordeste, costuma-se amarrar o santo com uma fita no braço no dia 29 e assim, fica o santo obrigado a dar um presente à pessoa que o amarrou.
Ao santo é atribuído o dia 29 porque foi num dia de junho, provavelmente no ano de 67 d.C., que ele e o apóstolo Paulo foram levados ao tribunal militar para serem condenados. O dia também é dedicado a São Paulo, entretanto, ele é pouco lembrado durante as festividades juninas.

I.II Comidas Típicas

As festas juninas também estão relacionadas à colheita do milho, que é largamente utilizado em diversos pratos típicos do São João, tais quais: broa de milho, mungunzá, canjica, pamonha, cuscuz, pipoca, dentre tantas outras.
Foi o índio quem ensinou aos ibéricos o cultivo e consumo do milho, que foi levado para a Europa, onde recebeu processos de tratamento diferenciado dos demais cereais como o trigo e o arroz. Embora tenha sua origem indígena, as comidas típicas do Ciclo Junino receberam influência dos portugueses e do negro.
Outro ingrediente bastante utilizado na culinária nordestina nesta época é o coco, comum em vários pratos típicos da região, independentemente do período do ano. Em seu livro Açúcar, Gilberto Freyre recolheu 91 receitas de bolos e doces nordestinos, dentre os quais, 57 utilizavam o coco como um dos ingredientes principais. ‘Nos festejos juninos, de mãos dadas com o milho, o coco também ajuda no preparo de pratos que, sem o gosto que ele dá, não seriam tão gostosos, eternizando, assim, uma tradição regional (SOUTO MAIOR, 1995). Dentre as receitas da culinária junina em que o coco aparece temos o bolo de São João, a canjica, o mungunzá, o bolo cabano, a pamonha, o pé-de-moleque e tantos outros.
Transcreveremos agora a receita do Bolo de São João, menos ‘ortodoxo’ que o pé-de-moleque, mais igualmente afamado, segundo nos diz Bettencourt.

Bolo de São João
Ingredientes:
- 250g de massa de mandioca;
- 14 gemas de ovos;
- 120g de manteiga;
- 150ml de leite de coco;
-500g de açúcar.

Modo de fazer:
Bater as gemas e juntá-las à manteiga e ao leite de coco. Posteriormente, colocar o açúcar e a massa até formar uma massa homogênea. Levar ao forno médio numa forma untada com manteiga.


I. III. Músicas

As festas de junho são algumas das mais musicais do folclore nordestino. Com as ‘trezenas de Santo Antônio’, que começam no primeiro dia do mês, durante treze noites, nos espaços urbanos ou rurais, entoam-se coros em louvor ao santo milagreiro:

Milagroso Antônio
Nosso Padroeiro
Enche de alegria
Pernambuco inteiro

Para além dos coros religiosos, as festas juninas também trazem rituais que se utilizam de vários estilos e instrumentos musicais típicos da cultura nordestina, como por exemplo, o ritual do chamado ‘Acorda Povo’, que sai às vésperas do dia de São João, acordando os habitantes das localidades próximas ao cortejo, com zabumbas, sanfonas, ganzás e outros instrumentos, tudo regado a muita cachaça.
Nas zonas rurais é possível encontrar manifestações musicais de origens diversas e, por vezes, desconhecidas, como por exemplo, o xote, de origem polaca e o coco, advindo das ‘batucadas’ africanas. Ambos os estilos musicais são acompanhados por suas danças específicas.
Existem também outros conhecidos estilos musicais joaninos, que têm muita procura durante todo o ano, nos centros urbanos: o baião, e, principalmente, o forró, que também se tornou bastante popular nas regiões centro-sul do país.
As letras das músicas procuram ao máximo reter o sotaque nordestino, acentuando-se as últimas sílabas de determinadas palavras ou grafando-as da maneira como o ‘matuto’ costuma falar. Um compositor que procurava sempre retratar bem essa ‘fala’ do nordestino foi Luiz Gonzaga: ‘(...) mas o dotô nem inzamina (...) ela só qué, só pensa em namorá.’[2]; Eu nesse coco num vadeio mai/ apagaro o candihero derramando o gai’.[3]
Ademais, ‘(...) nas composições ligadas ao ciclo junino está toda a moral do sertanejo: Sertão das muié séria e dos home trabaiadô (Volta da Asa Branca); Cabra assim desse geitinho (sic) / no sertão do meu Padrinho / Cabra assim num tem vez não... (xote dos cabeludos)’ (BETTENCOURT, op. Cit.).

I. IV. Danças

As danças são elementos de extrema importância dentro do folclore junino. Existem muitos estilos, que são dançados ao som das músicas próprias. Neste trabalho, nos deteremos em abordar apenas o Coco, e a Quadrilha.

I. IV. I. Coco
Rodrigues de Carvalho, em seu ‘Cancioneiro do Norte’ (1928), afirmou que o Coco era a dança preferida dos negros e caboclos que trabalhavam nos engenhos, Posteriormente, ultrapassou esses espaços e penetrou nos litorais, nos salões de dança dos grandes centros urbanos.
O Coco é uma dança típica de Alagoas, mas é amplamente conhecido em várias regiões do Norte e Nordeste do Brasil. Como falado anteriormente, é marcado pela influência africana, entretanto, coreograficamente tem fortes influências indígenas.
Embora exista grande variedade de cocos, a coreografia e formação têm, em geral, a mesma base: uma grande roda de casais, cantando e dançando ao som das palmas, sapateados e das percussões. Um casal se coloca no centro da roda, executando passos típicos. Posteriormente, esse mesmo casal se coloca em frente a outro casal que compõe a roda e trocam de posição.
Segundo Astermann (1995):
Do trabalho de quebrar cocos com pedras, de forma rítmica e cadenciada (...) do canto de quebrar o coco ou ‘vamos quebrar o coco’, inicialmente dirigido ao trabalho, e do grito excitante de ‘quebra’, posteriormente dirigido ao baile, forma-se o convite para uma noitada alegre de coco dança.

I.IV.II. Quadrilha

Na definição de Câmara Cascudo (2001), a Quadrilha é ‘(...) uma dança palaciana do século XIX, protocolar, que abria os bailes da corte em qualquer país europeu ou americano, preferida por toda a sociedade’. Era bastante popular na França, no final do século XVIII. O nome ‘quadrilha’, vem do francês ‘quadrille’, que por sua vez vem do italiano ‘squadra’, que era um termo utilizado para designar a formação dos soldados dispostos em quadrado.
No Brasil, a dança era formada nos salões dos palácios da elite imperial, porém, com o passar do tempo, a dança foi tomando lugar entre os trabalhadores industriais urbanos e alcançou o interior do país, onde se tornou parte dos festejos do Ciclo Junino.
De volta aos grandes centros urbanos, a quadrilha passou a ser considerada como uma dança de origem caipira, por ser o ponto culminante dos festejos de um casamento interiorano.
Assim, atualmente, os noivos e o padre aparecem como figuras de destaque na coreografia, e por anos foram representados em tom jocoso, com matutos desdentados e roupas remendadas, o que não corresponde à realidade, uma vez que à época de grandes festas, os assim chamados ‘matutos’ vestem as melhores roupas de seus armários.
Nos dias de hoje, entretanto, as quadrilhas têm deixado tais elementos de lado para dar lugar à ‘(...) novos passos, até mesmo de aeróbica (...) e enredo atualizado da parte dramática’ (TRIGUEIRO,1995). Sobre esse processo de ‘modernização’ pelo qual tem passado a quadrilha, Alberto da Cunha Melo (2001) escreve o seguinte:
Os folcloristas que, com razão criticavam a caricatura do camponês nas quadrilhas antigas, com calças e saias de remendos, hoje se batem contra a excessiva estilização daquela dança, pois (...) havia quadrilhas dançando funk.

Por todas essas inovações, Ovaldo Trigueiro (1995), escreveu que a quadrilha estava passando por um processo de transição, deixando de ser uma dança para se estruturar como um folguedo. Treze anos depois desta constatação, é possível dizer que a quadrilha, como todo elemento histórico, cultural e social, continua em processo de transição, entretanto, já é possível classificá-la como um folguedo popular, uma vez que, recorrendo mais uma vez a Cascudo, o folguedo reúne as seguintes características ‘(...) 1) Letra (quadras, sextilhas, oitavas ou outros tipos de versos); 2) música; 3) coreografia; 4) temática (enredo de representação teatral).’ Atualmente, a quadrilha apresenta todas estas características.
A seguir, descreveremos alguns passos da coreografia:
Anavantur (En avant, tout): cavalheiros tomam as damas e andam até o centro do salão;
Anarriê (En arriére): os pares voltam, de mãos dadas até o ponto da fila em que estavam;
Balancê com seus pares: o cavalheiro e a dama fazem o balanço em seus lugares;
Caracol: os pares se colocam em fila indiana e a dama do cavalheiro guia começa a marchar em direção ao centro do salão. Quando o caracol estiver formado, todos esperam a ordem do marcador. Quase sempre, as quadrilhas terminam com o caracol.
A quadrilha é, para muitos, um dos momentos mais esperados do São João. Como as Escolas de Samba da Sapucaí, aqui no Nordeste várias quadrilhas passam o ano inteiro ensaiando o enredo, decidindo e preparando as roupas, para participar das mais variadas competições:
O furor da contradança,
Por toda parte s’estende,
A todo gênero humano
A quadrilha compreende

Nas baiúcas mais nojentas,
Onde a gente mal se vê,
Já se escuta a rabequinha
Já se ouve o balancê.






BRINCADEIRAS JUNINAS

II. I Balões

‘Na noite escura, profundamente estrelada – a surpreendente beleza desse céu do sertão brasileiro! – balões sobem, aos boléus no vento, de formas impagáveis (...) chameiam estrelinhas, esfuziam as rodinhas, lampejam os pistolões ardem, piramidais, alumbradoramente’ (BETTERCOUT, op. Cit). Esta é a descrição de um céu de beleza ímpar, iluminado pelos balões juninos, em meados do século XX.
Embora recobrissem o céu de fantasia e beleza, já em 1970 os balões eram conhecidos por sua periculosidade: incêndios, florestas e casas em chamas, mortes e um sem número de acidentes, citados em ‘Bruno, o Balão Azul’, de autoria de Rubem da Rocha Filho.
A tradição junina, entretanto, não deixa esquecer esse elemento que torna as noites de junho ainda mais lúdicas, fantasiosas e belas, quando se contentam em apenas subir, tornando-se ‘anjinhos do céu’:[4] ‘cai, cai balão/você não deve subir/ quem sobe muito/ cai depressa sem sentir/ a ventania/ da tua queda vai zombar/ cai, cai balão/ não deixa o vento te levar’ (cai, cai balão – Assis Valente); ‘olha pro céu meu amor/ vê como ele está lindo/ olha aquele balão multicolor/ meu amor vê como no céu vai sumindo’ (olha pro céu, meu amor – José Fernandes); ‘Meu balão azul/ foi subindo devagar/ o vento soprou/ meu sonho carregou/ nem vais mais voltar’ ( Sonho de papel – Carlos Braga Alberto Ribeiro).

II.II. Fogos de artifício

Ultrapassando a ‘roda em torno da fogueira’ dos solstícios de verão europeus, aqui no Nordeste o ‘culto ao fogo’ também é composto pelos fogos de artifício. A presença destes fogos já é relatada no São João de 1603, descrito por Frei Vicente Salvador.
Assim como os balões, os fogos também representam um perigo desde os tempos mais remotos. Benjamin e Araújo (1995) relatam que desde os primeiros tempos do Diário de Pernambuco, as notícias e histórias que eram contadas a respeito dos fogueteiros envolviam sempre acidentes. Assim, em sete de agosto de 1715 foi proibido o lançamento de fogos de artifício no Recife e em Olinda. Em 1716, por não ter sido respeitada a proibição, ficou estabelecida uma pena de dois meses de cadeia e multa de 50 mil réis.
A tradição dos fogos ou foguetes, entretanto, continuou a freqüentar as páginas de nossa história, nas festas, coroações, vitórias militares na vinda da família real, etc. Nas cidades, entretanto, a produção de fogos entrou em considerável declínio.
Alguns fogueteiros, porém, mantém essa tradição, não mais fabricando os fogos nas suas próprias casas, como se costumava fazer, mas sim, por determinação das autoridades, em oficinas estabelecidas em prédios isolados, a pelo menos 500m de distância das casas, o que praticamente confinou a atividade dos fogueteiros às zonas rurais.
A profissão de fogueteiro é principalmente reservada aos homens, mas algumas mulheres auxiliam os maridos no fabrico.
É possível classificar os fogos de artifícios em três grandes grupos, a saber: os fogos-de-chão: são aqueles destinados principalmente às crianças, como por exemplo, a bombinha, o chuveirinho, a estrelinha e a bomba; fogos-de-subida: são os fogos atirados para o céu e que podem produzir um estouro ou podem ser luminosos, como os rojões, as salvas, meia-salvas, etc. Por fim, existem também os fogos-de-vista, que são preparados para eventos especiais e devem ser queimados apenas pelo mestre fogueteiro que os fabricou.
Segundo escrevem Benjamin e Araújo ‘(...) a alegria, o sonho e esperança de todo fogueteiro é poder preparar para a próxima festa um espetáculo de beleza e vida, luz e som, onde (...) queimam-se fogos em luxúria de cores, espoucam bombas de sete estouros. Os pistolões atiram para o céu estrelas artificiais que furam a bruma da noite e se perdem dentro dela.

II.III Adivinhações e simpatias
Como mencionado anteriormente, o São João é uma das festas populares que mais envolve misticismo e mistério, a começar pelas lendas que cercam o dia. O tom místico completa-se com as adivinhações, que são crendices populares que sobrevivem na tradição oral e terminaram por passar de uma geração para outra.
As adivinhações e as simpatias estão ligadas, em sua maioria, aos assuntos referentes ao romance, uma vez que as noites de São João, pelos elementos que possuem (o céu estrelado os fogos de artifícios, as danças aos pares, as fogueiras, etc.) tornam a atmosfera propícia ao romantismo.
Assim, nas festas juninas existe a tradição das adivinhações, que mostrarão às moças o seu futuro pretendente, ou, muitas vezes, a idade deste e as simpatias, que devem garantir o casamento que se quer, resolver problemas conjugais ou permitir que se sonhe com a pessoa amada.
Segue abaixo algumas simpatias e adivinhações comuns nas festas do ciclo junino[5]:
Simpatia para sonhar com a pessoa amada:
Escreva em um papel o seguinte:
Anjo da Guarda
Me deixe sonhar com (fulano)
A quem hei de amar.

Em seguida pegue uma pétala de rosa, que deve ir, junto com o papel escrito, para dentro de um envelope. Na hora de dormir coloque este envelope por baixo do travesseiro. Ao fechar os olhos para adormecer, repita trinta vezes o dito:

Anjo da Guarda
Me deixe sonhar com (fulano)
A quem hei de amar.
Depois, repita trinta vezes o nome da pessoa

Simpatia da volta
Esta simpatia é muito rezada em casos de abandono de lar, por parte da esposa ou do marido, assim como em casos de noivos e namorados que sumiram sem paradeiro. Consiste em pegar um pombo vivo, com as asas boas para voar, amarrando no seu pé um bilhete com os seguintes dizeres:
Vai meu pombo
Encontrar quem se foi
Voando e sendo
Sobre a terra onde ele/ela se escondeu
Vai meu pombo levar minha lembrança,
Pois só assim (fulano)
Voltara para casa (ou para mim)

Algumas adivinhações:

*Em noite de São João, passa-se um ramo de manjericão na fogueira e atira-se ao telhado; se na manhã seguinte o manjericão ainda estiver verde, o casamento é com moço, se murcha, é com velho;

*Em noite de São João, dão-se nós nas quatro pontas do lençol, tendo-se previamente escrito nelas os nomes de quatro pessoas queridas, mas os nós sendo bem frouxos; ao amanhecer, o nó que estiver desmanchado indicará o nome do esposo ou da esposa;

*Em noite de São João, introduz-se numa bananeira uma faca, que ainda não tenha servido; no dia seguinte, aparecerá na faca a inicial da noiva ou do noivo.

*Em noite de São João, escrevem-se em papelitos os nomes de várias pessoas, enrolam-se os papelitos, e se põe numa vasilha com água; o pedaço que amanhecer desenrolado indicará o nome da noiva ou do noivo.

*Em noite de São João, põe-se um pouco de clara de ovo num copo contendo água; no dia seguinte aparece uma igreja (casamento) ou um navio (viagem próxima), etc., etc.






Bibliografia

BETTENCOURT, Gastão de: Os três santos de junho no folclore brasílico, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1947;
CASCUDO, Câmara: Dicionário do folclore brasileiro, Global Editora, São Paulo, 2001;
MELO, Alberto da Cunha: São João (fogo, folk e mores nordestinos) in Continente Multicultural, Ano 1. Nº 6, Junho/2001;
MONTEIRO, Maria Letícia: Milho na fogueira in Continente Multicultural, Ano 1. Nº 6, Junho/2001;
SILVA, Leny de Amorim (org.): Ciclo Junino, Recife, Prefeitura da Cidade do Recife, 1992;
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira: Festejos juninos e os ritos de origem agrária in INTERCOM Revista brasileira de comunicação, São Paulo, Vol. XVIII, nº 2, julho/dezembro de 1995;

[1] Canção retirada do livro Os três Santos de Junho, de Gaspar de Bettencourt.
[2] Xote das meninas, Zé Dantas e Luiz Gonzaga
[3] Derramando o gai, Zé dantas e Luiz Gonzaga
[4] Expressão utilizada por Rubem da Rocha Filho no livro citado.
[5] As simpatias e adivinhações foram retiradas do livro Ciclo Junino, que está presente na bibliografia.

terça-feira, 20 de maio de 2008

As mulhers nas Cartas de remissão na França nos séculos XVI e XVII

Este é mais uma versão escrita de um estudo apresentado em sala de aulas por alunos e alunas do V Período do curso de História da UFPE, neste primeiro semestre de 2008




Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
Professor Severino Vicente da Silva
Disciplina: História Moderna II


CARTAS DE REMISSÃO NA FRANÇA NOS SÉCULOS XVI E XVII




Grupo:

Djair Calumbi Junior
Renata Guedes alcoforado
Roberta Duarte da Silva
Uziel Pereira



Recife, 2008.

Sumário

Introdução _____________________________________
Breve esboço acerca da Economia, Sociedade e Política da França
As Cartas de Remissão: Definição e Importância ___________
A burocracia nas Cartas de Remissão ___________________
As diferentes abordagens nas Cartas masculinas e femininas___
As mulheres das Cartas de Remissão ___________________
Conclusão ______________________________________
Referências bibliográficas____________________________



Introdução

A produção historiográfica sobre as mulheres vem crescendo paulatinamente, e adquirindo uma característica pluralista, abrangendo distintas formas de abordagens e conteúdos variados. Temas esses que versam desde o papel feminino na família, no casamento e na maternidade, até suas lutas e estratégias cotidianas na educação, com os padrões de comportamento e códigos de sexualidade. Esta expansão nos estudos assistida atualmente está estreitamente ligada a alguns fatores, como: transformações ocorridas no fazer histórico (Pós-Annales, surgimento da Nova História, e logo da história cultural); a maior presença feminina no mercado de trabalho; expansão da luta das mulheres pela igualdade de direitos e pela liberdade, sobretudo com o ressurgimento dos movimentos feministas na década de 70; sem falar, da própria redefinição do político frente ao deslocamento do campo do poder das instituições públicas e do Estado, para a esfera do privado e cotidiano.
Estudar as mulheres é entendê-las dentro da noção de Gênero, como uma categoria de análise histórica, estudos esses que não se sintetizam apenas no ser feminino, mas também se atrelam ao masculino, destacando que ambos não se resumem aos fatos naturais ou biológicos, todavia representam construções sócio-culturais situadas historicamente no tempo.
Assim, a análise das mulheres nas cartas de remissão na França nos séculos XVI e XVII, é um estudo que possibilita a descoberta de temporalidades heterogêneas e das múltiplas relações sociais, que vão descortinar os estereótipos de uma época marcada pelo domínio masculino, e quebrar com alguns conceitos culturalmente disponíveis no período. Compreender a mulher como participante ativa dessa conjuntura, é uma nova possibilidade que se abre nesse estudo, propiciando uma visão mais ampla de seu cotidiano e representações.
A estrutura temática do trabalho foi desenvolvida para proporcionar um melhor entendimento da presença feminina nas citadas cartas de remissões, delineando a conjuntura política, econômica e social do período, aliada a conceituação das cartas de remissão e das mulheres representadas, realizando analogias interessantes com as cartas de remissões masculinas, visto sua relevância para a construção dessa pesquisa, bem como para a melhor compreensão do contexto e do período estudados.
É também de suma importância a explanação acerca das fontes utilizadas para a confecção deste estudo. O eixo principal citado anteriormente está centrado num estudo da historiadora Natalie Zemon Davis. A partir desse corpo vão sendo feitos questionamentos sobre essa pesquisa e de como a autora busca escrever a história do período.
A pesquisadora em questão tece uma série de comentários sobre as histórias de perdão do século XVI na França e dentro dessas explicações é de elementar importância que seja identificada o posicionamento com que ela busca construir o conhecimento. Natalie tem por principais influências intelectuais dois grandes filósofos franceses: o primeiro é Paul Ricoeur[1], o segundo é Roland Barthes[2]. Essa influência fez com que seus textos tenham antes de tudo uma preocupação com a relação das estruturas estudas e disso resulta um discurso abalizado por diferentes aspectos da conjuntura estudada.



Breve esboço acerca da Economia, Sociedade e Política da França

O clima de instabilidade social e política, bem como a deterioração dos quadros de referência refletem o período que abrange os séculos XVI e XVII, onde a Reforma e a Contra-Reforma abalaram conceitos religiosos arcaicos, sem falarmos da paulatina transformação que abarca a mudança de costumes feudais que ainda encontravam-se no meio social abrindo espaço para o mercantilismo; sem esquecermos da incipiente burguesia que começava a mostrar a suas feições.
Em relação ao meio social Pierre Chaunu[3] fala em três pólos na sociedade da Europa Ocidental e Meridional, onde a França seria um pólo de pequena propriedade campesina, porém com direitos senhoriais muito pesados. No século XVI a sociedade estaria dividida basicamente em três Estados, onde no primeiro se encontrariam representados os nobres, o segundo do estado médio, e o terceiro contendo o restante da sociedade, é válido salientar que os camponeses significam a grande massa do século XVI.
Já em relação à economia essa é uma época de crescimento para toda a Europa, já que as minas da América proporcionavam uma boa entrada de metal, e como sabemos devido à defasagem do Estado hispânico esse metal acabava indo mais para outros estados europeus do que na própria metrópole espanhola. Nesse mesmo período na regência do Reino da França temos várias personagens, dentre elas algumas figuras cuja importância sugere uma breve análise, já que foram citadas no livro de Histórias de Perdão.
No século XVI temos Francisco I e Henrique II, sendo uma característica comum aos dois o fato de que os mesmos consultavam a nobreza ao tomar suas decisões, devido como já comentado anteriormente, da manutenção de antigas características feudais, aonde a centralização política na figura do Rei vai se dar através da construção corrente, o qual terá seu apogeu com Luís XIV, no século XVIII.
Outra característica importante se refere ao fato que toda taxação recaia sobre a sociedade campesina, já que a nobreza era isenta de tais medidas, e as conseqüências de tais ações são revoltas em alguns momentos, como a da Fronda[4] no século seguinte. Essa revolta se deu devido às altas taxas as quais incidiam sobre os pobres, a qual fora agravada pela sucessão de três más colheitas, essa crise aconteceu no governo de Mazarino, que foi o sucessor de Richelieu, figura caracterizada pela utilização de várias medidas objetivando a centralização do poder.
Retornando ao enfoque da economia tivemos o aumento do arrecadamento pelo Estado através das vendas de cargos, sem falarmos no patrocínio às manufaturas régias e companhias oficiais de comércio, buscando proteger o comércio da concorrência exterior. Mas esse projeto foi iniciado com Henrique IV, se antecessor, onde outra pessoa de destaque é a Colbert com suas medidas buscando proteger o mercado interno elevando as tarifas aduaneiras.
Como já foi comentado no inicio desse texto percebemos agora mais explicitamente os motivos de ser esse período que abrange os séculos XVI e XVII tão conturbado, afinal mudanças econômicas e políticas normalmente afetam e alteram as formas de vidas.



As Cartas de Remissão: Definição e Importância

Após a contextualização anteriormente executada, e tendo a sociedade francesa dos séculos XVI e XVII como parte constitutiva do foco de discussão dessa explanação, bem como a análise dos acontecimentos[5] ocorridos no seio dessa sociedade, faz-se necessário os devidos esclarecimentos.
No caso específico do trabalho desenvolvido um ponto chave para o mesmo é a ação das cartas de remissão dentro da sociedade da França nos anos que abrangem os séculos já citados, e é de necessidade ímpar o detalhamento da acepção desses termos e de suas aplicações. Isso tudo certamente em conjunção com as mulheres desse período e sua ação na sociedade. É importante assegurar, ainda, para que a compreensão da estrutura global dessa pesquisa seja alcançada, que a relação do contexto social da França, a situação da mulher nesse quadro social e a participação feminina nas cartas de remissão estejam sempre associadas e nunca dissociadas em qualquer apreciação que seja feita acerca do tema em questão. Portanto, na seqüência imediata do escrito os pormenores com referência ao significado das expressões chaves desse trabalho serão evidenciados.
Remissão, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira[6], no “Miniaurélio”[7], é a ação ou ato de remitir (-se); Clemência, perdão; Perdão de ônus ou dívida; Ação ou efeito de remeter. Sob a perspectiva jurídica na França dos séculos XVI e XVII, a remissão trata-se, por exemplo, no ato no qual o Rei concede o perdão legal para um determinado crime. Parece óbvio que nem todos os crimes eram considerados passíveis de uma análise Real, mas isso será alvo de explanação a posteriori.
Os pedidos de remissão eram feitos através de cartas destinadas ao Rei da França[8], o qual apreendia o poder de conceder ou não o perdão pelo crime cometido. Geralmente a carta de remissão era a derradeira tentativa a qual o sentenciado optava, estavam ligadas ao requerente por causa de uma possibilidade de morte, ou seja, normalmente a princípio, os pedidos de perdão eram reservados a casos em que o transgressor havia ou seriam condenadas à pena de morte por causa do crime cometido, embora na prática nem sempre as duas coisas estivessem relacionadas.
Eis justamente o objeto com o qual a historiadora Natalie Zemon Davis buscou analisar a sociedade francesa do século XVI, seja através da resultante desses pedidos, seja a partir das narrativas consideradas nessas petições. Esse estudo foi publicado em forma de livro cujo título é: Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI[9]. Nessa obra estão representadas diversas questões e reflexões acerca da situação das mulheres na França, a partir das representações inseridas nas cartas de remissões as quais a historiadora obteve êxito no acesso. È importante ressaltar, ainda, a maneira que a autora trata seu próprio estudo, bem como o objeto principal de sua investigação. Para ela, a carta de perdão, é, antes de tudo, uma ligação entre história, literatura e direito[10]. Nessa perspectiva ficam mais claras as observações que foram feitas anteriormente sobre o sentido da remissão.
As cartas de remissões são de suma importância para o estudo da história desse período, acertadamente assinalado por Natalie, já que ela é uma fonte valiosa para a história dessa sociedade. Para Zemon Davis as cartas são de gênero misto, no qual estaria inserido concomitantemente tanto o caráter jurídico, quanto o histórico e o literário, e assim ela escreve o seguinte:

(...) De acordo com as categorias dos retóricos e teóricos literários renascentistas, as cartas de remissão eram um gênero misto: uma petição judicial destinada a persuadir o rei e a corte, um relato histórico dos atos de um indivíduo no passado e uma história[11].

Portanto, o aspecto jurídico dessas petições é incontestável já que a partir delas é que eram observadas as possibilidades de perdão. No contexto da observação histórica os requerimentos são por demais relevantes, pois os mesmos são fontes de preciosas informações. Natalie analisa a importância desses subsídios assim:

(...) Elas constituem fontes preciosas para o estudo das festas, da violência e da vingança em diferentes meios sociais e grupos etários, das atitudes relativas ao rei e das imagens que dele se faziam, e de outras normas sociais e culturais[12].

No contexto jurídico a importância de uma carta de remissão é sentida na seguinte passagem:
(...) Por meio de uma carta de remissão (uma vez ratificada por uma corte legal), o perdão real impedia que a pessoa fosse executada e também impedia ou limitava o confisco real de bens que acompanhava essa pena, ou – para citar a fórmula – “perdoava o ato [...] e cancelava toda penalidade, multa, e prejuízo corporal, criminal ou civil que pudesse dela resultar [...] e restaurava ao requerente sua boa reputação e bens” [13].


É relevante ressaltar, que as mulheres presentes no contexto das citadas cartas, encontravam-se certamente inseridas sob perspectivas diferentes no que tange ao aspecto cultural, social, econômico que vivenciavam.



A burocracia nas Cartas de Remissão

A carta de remissão geralmente podia ser realizada através de duas situações: o requerente podia ser preso imediatamente depois da morte da vítima, e logo seria aconselhado por um parente, um advogado ou um juiz, ou decidia por conta própria realizar o pedido de remissão; ou o pedido de remissão poderia ser solicitado depois da condenação à execução ou a pesadas multas.
Trevor - Roper[14], em seu estudo[15] sobre a crise geral do século XVII, afirma que a Europa nos tempos modernos, é caracterizada por uma grande burocracia em expansão, um imenso sistema de centralização administrativa, cujo membros constituem uma multidão sempre crescente de “cortesão” ou “funcionários”, a qual com o passar do tempo, foi se transformado em uma burocracia funcional parasitária, oriunda de grandes gastos para a coroa. O processo pelo quais os pedidos de cartas de remissão passavam para conseguir a ratificação, e um bom exemplo da existência dessa burocracia funcional acima citada. Todos que buscavam perdão tinham de conseguir uma autorização de um funcionário da chancelaria real; após obter a autorização, a história do crime era narrada a um notário real e aos seus funcionários, pelo próprio requerente, ou pelos seus familiares ou por um advogado contratado. Uma vez escrita à carta formal, ela deveria ser lida na presença de um chanceler ou de seus representantes, como o mantenedor dos selos, e talvez discutida com um chefe de petições. O pedido era examinado para que os funcionários da Chancelaria pudessem se certificar de que o crime narrado era passível de perdão, e de que a desculpa formulada era aceitável. Isso feito, a carta era assinada, selada com cera verde com fios de seda e, depois do pagamento, entregue na mão do requerente. Zemon Davis salienta que o preço de uma carta de remissão era mais de duas vezes superior aos ganhos de um trabalhador não qualificado, maior que o salário mensal de um gráfico profissional, e quase equivalente ao dote de uma arrumadeira, o que seria em torno de 10 a 12 libras.
A posse carta não significava o fim da burocracia, pois era necessária ainda a ratificação de uma corte real, fosse à corte superior da jurisdição regional do local onde o crime ocorrera ou o Parlamento, que era a suprema corte para aquela jurisdição. O solicitante apresentava-se aos juizes, acompanhado de seus parentes, onde lia a carta em voz alta, jurando que o seu conteúdo era verdadeiro e implorava o benefício da graça real. Posteriormente, os juizes faziam perguntas e estimulavam um prolongado recital de respostas, que deviam se ajustar ao relato feito ao rei e também à informação recolhida durante o julgamento ou no período em que o solicitante esteve foragido. Assim, o solicitante, geralmente na condição de prisioneiro, esperava semanas ou até meses, que o advogado do rei formulasse sua opinião.
Se a história do crime parecesse aceitável depois da investigação, a carta era então ratificada, com a condição de que o requerente custeasse orações pela alma da vítima, pagasse uma soma a sua família, ou fizesse doações aos pobres. Em um pequeno número de casos, ordenava-se que o requerente se mantivesse afastado por um ou dois anos da cidade ou da aldeia onde ocorrera o crime, todavia no final, o solicitante podia retornar a sua antiga vida, perdoado e com sua reputação restaurada. Se a carta de remissão era rejeitada em vez de ser ratificada, ele teria de enfrentar os rigores de um processo criminal, a menos que isso já tivesse ocorrido, ou ser executado, ou expulso por longo período, ou condenado à prisão perpétua e a trabalhos forçados, além de pesadas multas.
Vale ressaltar, que o caminho da remissão apresentava algumas vantagens no contexto da lei francesa para homicídios e diante dos procedimentos criminais franceses. A legislação francesa do século XVI não traçava distinção conceitual entre “assassinato” e “assassinato não premeditado”, nem estabelecia penas diferentes para ambos, como logo aconteceria na Inglaterra, que só iria se consolidar na França com o código penal de Napoleão. O homicídio era tratado sob uma única visão, podendo ser baseado provavelmente na antiga crença, baseada no Deuteronômio 21, e citada em textos legais, onde qualquer derramamento de sangue despertaria a ira de Deus e tinha de ser compensado de alguma forma. Dentro desse quadro geral, existiam os casos em que o juiz podia ser mais moderado na sentença e em que o rei podia oferecer seu perdão.
Existiam alguns casos em que mesmo o homicídio não sendo permitido, poderia ser absolvido e perdoado pelo rei, que por sua vez, possuía o poder da Remissão, seriam: homicídio por acidente; homicídio por imprudência, sem maus pensamentos ou más intenções; homicídio de um ladrão ou agressor que invadiu a casa do requerente; homicídio praticado em um torneio sem más intenções; homicídio cometido por uma pessoa sem discernimento, e supostamente sem malicia, maldade ou fraude; homicídio resultante de uma briga repentina, sendo perdoado por causa da raiva; homicídio relacionado a pessoas que resistem à prisão; homicídio durante jogos; homicídio cometido por uma pessoa “rara e excelente”; homicídio cometido por um velho cuja vida pregressa foi isenta de brigas e contendas; e homicídios que após vinte anos não teve acusação nem processo; entre outros.



As diferentes abordagens nas Cartas masculinas e femininas

Na tentativa de assegurar uma compreensão satisfatória do tema estudado e também para uma melhor visualização das diferenças das cartas de perdão, no tocante a autoria das mesmas, é necessária uma breve explanação acerca deste tema.
Como já vimos, as cartas de remissão eram documentos que visavam a obtenção de perdão real para crimes cometidos, crimes esses que poderiam ou não ser considerados pelos representantes da Coroa como remissíveis. Vimos também que a sociedade do período estudado estava muito centrada na relação de poder que o homem exercia sobre a mulher e esse ponto é crucial para o bom entendimento dessas divergências de abordagens, pois o homem, àquela época, tinha direitos que contrariam a lógica da sociedade contemporânea, pelo menos em sua normalidade. Por exemplo: um homem tinha o direito de aplicar castigos corporais em suas esposas sob a alegação de terem se sentido ofendidos por algum ato executado por sua mulher. Esse fato revela a submissão a qual essas mulheres estavam submetidas dentro dos quadros sociais. Quanto a esse tema foi observado que, na sociedade atual, essas atitudes são ilógicas, não significa dizer que os tais atos não ocorram, pelo contrário, há vários casos de violência contra a mulher ainda, as estatísticas corroboram a ressalva. Porém, o importante de se destacar é que hoje é crime a violência contra mulheres e nos séculos XVI e XVII eram direitos inerentes à condição de homem, entenda-se indivíduo do sexo masculino.
É nesse contexto o qual se desenvolvem os principais crimes desses dois séculos abordados, e também sob essa perspectiva que a maioria dos delitos transformam-se em pedidos de remissão.
Os pedidos de remissão de autoria de homens constituíam a maioria dos pedidos da base de dados estudada, isso se deve, provavelmente, ao fato de que a quantidade de crimes cometidos por homens que poderiam ser remissíveis era muito maior do que os perdoáveis no caso das mulheres como executoras.
Nos seus pedidos de perdão, os homens buscam demonstrar a humilhação a qual eles foram submetidos, bem como procuram apresentar sua vida pregressa como sendo a vida de indivíduo ilibado. Esses estratagemas são bem característicos do contexto das cartas masculinas, já que segundo a ordem natural, novamente retornando a esse ponto, as mulheres deviam obedecer a seus maridos com paciência, deviam a esse sua fidelidade em seus diversos contextos, assim como a reputação do marido não poderia ser atingida pela atitude de suas esposas. Como de fato isso normalmente tomava projeções que estavam fora da realidade desejada, os homens sentiam-se no direito de lançar mão dos castigos corporais e por vezes extrapolando esse direito.
Numa passagem do livro de Zemon Davis encontra-se transcrita a petição de um Thomas Manny[16], o qual pedia perdão o homicídio cometido contra sua esposa sob a alegação que a mesma estava periodicamente cometendo adultérios e que isso em dado momento, constantemente humilhado diante dessa situação o requerente pega a sua mulher na casa de vizinhos e a leva para casa onde deveria ficar sem que pudesse sair, nesse instante os referidos vizinhos se dirigem até a porta da frente da casa do requerente e começam a ameaçá-lo com pedras que eram atiradas em direção a casa, além disso, ele é achincalhado pelos vizinhos que o chamam de “corno”, “chifrudo”, dentre outras palavras de baixo calão. Com tudo isso em foco o requerente num momento de fúria, segundo ele, questiona se tem de morrer por uma “puta”, e assassina a mulher. Toda a construção da narrativa é feita para que se possa evitar que o réu seja inserido num contexto que criminoso cruel, e através de uma linguagem apelativa tenta redimi-lo da culpa.
Na descrição do pedido de perdão de uma mulher, a requerente do pedido é Marguerite Vallée[17], que se utiliza também de uma linguagem apelativa para construir sua narrativa; porém nesse caso específico, a requerente envolve também no seu pedido o fato de ser violentada continuadamente por seu marido e que certas vezes preferia ter sua vida finalizada a ter que continuar a sofrer os maus tratos do marido. Um ponto bem caracterizado na maioria das cartas de remissão de mulheres é o fato de que elas rejeitavam, normalmente, o argumento de que seus crimes teriam sido cometidos a partir de um momento de raiva, elas preferiam se mostrarem arrependidas a procurar uma desculpa para seu ato. Nesse caso Marguerite descreveu em sua carta uma série de tentativas de suicídio após a execução do ato criminoso e isso é uma característica de autopunição.
Nesses casos onde o crime era cometido pela esposa, o gênero era muito mais importante do que a classe social em questão.
Um outro aspecto a ser observado é que tanto nas cartas de homens ou mulheres o fato do requerente ter sido perdoado pela vítima constituía-se de um álibi precioso.
Por fim uma característica diferenciada entre pedidos de homens e mulheres é a quantidade de remissões seladas. Nesse caso das cerca de quatro mil remissões apenas 1% (um por cento) eram mulheres e de cada cem pessoas que estavam à espera na Conciergerie de Paris para ratificar suas cartas três eram mulheres[18]. Além dos homicídios conferidos às mulheres, os crimes capitais que com freqüência eram atribuídos a elas eram os de bruxaria e de infanticídio, ambos imperdoáveis, ou seja, estes nem entram nas estatísticas das petições.
Por fim é importante ressaltar que quando os pedidos não eram considerados pelo Rei, este poderia fazer com que uma sentença anteriormente julgada fosse cumprida, ou poderia haver uma moderação da pena.

As mulheres das Cartas de Remissão

As mulheres do século XVII e XVIII eram, sobretudo, de responsabilidade dos homens das suas famílias, a priori de seus pais, e quando se casavam passavam a ser responsabilidade de seus maridos, os quais seriam responsáveis em prover as necessidades de suas esposas.
Entretanto para as classes menos favorecidas esse costume não era praticado, ou melhor, rentavelmente possível, em virtude do poder econômico dessas classes, onde assistimos que tanto as mulheres solteiras como as casadas acabavam exercendo atividades empregatícias. Essas mulheres comuns acabam sendo excluídas de costumes sociais e podemos observar que a forma como são abordadas suas histórias são sempre na generalização, ao contrário de figuras que fazem parte da corte.
Contudo a análise da história dessas mulheres nos permite conhecer um pouco da história de seu país e como estava estruturada a sociedade naquela época.
Geralmente, saíam de suas casas aos 12 anos em busca de emprego, tanto nas áreas rurais como em áreas urbanas, impulsionadas na maioria das vezes por alguns motivos: primeiramente quando elas saiam deixavam de ser responsabilidade e um estorvo de seus pais, já que cuidados com a alimentação e abrigo passam a ser de responsabilidade de seu patrão; o segundo está diretamente relacionada a seu dote para o casamento, que teria que conseguir através de seu trabalho; e o por fim adquirir aptidões para atrair um marido. Bem, como sabemos os dotes eram costumes da época, todavia por sua família ser desprovida financeiramente, essa mulher acaba sendo responsável em juntar para poder assim casar. Daí ser geralmente costume o patrão pagar todo o salário apenas quando a mulher saia do emprego para outro, quando voltava para a casa de seus pais, ou quando iam se casar, tornando-se responsável por sua alimentação, vestimentas, ou seja, suas necessidades.
No entanto, os salários pagos a essas mulheres eram mais baixos, em virtude da justificativa que as mesmas já tinham seus pais e maridos para lhe sustentarem, ideologia essa diretamente atrelada à contra-reforma. Essas mulheres acabavam exercendo trabalhos domésticos, como limpar as latrinas, cozinhar, limpar a casa, lavadeiras, as quais eram consideradas a escala mais baixa, sendo que com um pouco de sorte elas acabavam promovidas para damas de sala ou de acompanhamento das nobres.
Porém, isso dependeria de seu comportamento, e até mesmo em alguns períodos, de seu grau de instrução, ensino esse ligado a sua moral e comportamento na sociedade; até o fato de sua higiene podem ser observadas, onde suas vestimentas eram analisadas pelos patrões. Havia também as que trabalhavam em indústrias de manufaturas, ou como rendeiras, valendo salientar que as criadas constituíam o maior grupo trabalhador na sociedade urbana.
Já o trabalho no campo era mais difícil de conseguir, até porque paulatinamente foi ficando mais escasso e mais disputado, fato esse que variava de região para região. Contudo quando não eram conquistadas essas vagas às mulheres acabavam migrando para as áreas urbanas, as mais próximas possíveis de preferência, mas quando isso não era possível elas acabavam seguindo rotas já existentes. O emprego no setor agrícola mais almejado era nas quinta agrícolas, sendo mais freqüentemente nas quintas leiteiras, onde a ordenha e o processo de fabricação de manteiga e queijo eram funções femininas.
Sua função no matrimônio e na família era sem dúvida mais complexa. Sabemos que a mulher tinha como função essencial para a procriação, ideologia essa advinda das questões religiosas, por isso como mãe elas eram mais cobradas diante dos acontecimentos para com seus filhos, dai se uma criança estivesse mal vestida, suja, arranhada a mãe seria mal vista pela sociedade; ressaltando que os filhos eram vistos como os perpetuadores da propriedade e a futura garantia para uma velhice tranqüila. Em relação a seu marido ou pai ela deveria obediência total aos mesmos, por isso, percebemos a partir da leitura das cartas de remissão o quanto era visto com ojeriza pelo meio social, como nos casos em que vizinhos se negam a ajudar, quando uma mulher acabava cometendo algum atentado causando a morte de seu esposo, apesar de ser em legitima defesa. Isso tudo esta relacionada à forma como era vista, como a filha de Eva, aquela a qual levava o homem a cometer o pecado da carne, ou como diz a seguinte frase “... mas o que há de mais ameaçador do que o corpo feminino e a sua sexualidade?”; sem falarmos que uma mulher pobre e feia no máximo conseguiria um marido, já uma provida com beleza, mas pobre padeceria diante dos pecados da carne, o que já não é válido para uma com melhores condições sociais e beleza. Isso tudo são algumas das justificativas referentes às divergências em relação às formas como as cartas de remissão são escritas, onde homens que matam suas mulheres por adultério teriam feito mais que em legitima defesa mais também em luta pela sua honra livrando assim a sociedade de uma transgressora de seus costumes; todavia uma mulher que escreve uma carta solicitando perdão ao rei, devido a maus tratos, por exemplo, ela se sente culpada por ter transgredido, mas que só fez tal transgressão porque a situação encontrava-se insustentável.
Constatamos assim que o papel dessas mulheres comuns, muitas vezes esquecidas por nossa história, era difícil de ser exercido, em virtude das exigências da sociedade, a qual lhe botava uma conduta restritiva e impecável. A falta de um casamento era mal visto pela sociedade, sem falarmos que era pouco comum, até porque os papéis sociais das mulheres estavam bem estabelecidos e a falta com tais eram inaceitáveis.
Não são muitas as mulheres francesas que tinham a oportunidade de fazer petições de perdão, e estudos quantitativos de indiciamentos ou recursos em casos de homicídios na França do século XIII até o século XVIII, comprovam este fato, pois as ocorrências que envolvem as mulheres variam entre 7,3% e 11,7% do total. No geral são mulheres que saíram ou foram expulsas da família; metade ou dois terços são solteiras; um quinto eram mulheres casadas, mas que foram abandonadas por seus maridos, e uma percentagem variável de viúvas. Um dos fatos para explicar esses números, é que os dois principais crimes capitais associados a mulheres – bruxaria e infanticídio – eram pouco perdoados, pois buscar misericórdia significava admitir o crime, e ambos eram considerados bárbaros.
O infanticídio, aqui definido como o assassinato de recém-nascidos é considerado um crime atroz, e visto como um ato de aflição cometido por mulheres em pânico, onde a gravidez é tida como uma catástrofe, pois as coloca perante o dilema de escolher entre o emprego e o filho. Geralmente as mulheres alegavam que os filhos haviam nascido mortos, e não mudavam a história nem quando torturadas. Porém esse crime era tratado com bastante rigor pela lei, e em fevereiro de 1557, Henrique II assinou um decreto sobre infanticídio que vigoraria durante todo o Antigo Regime: qualquer morte de bebê posterior a uma gravidez escondida ou a um parto clandestino, e sem batismo ou enterro formal, seria considerada homicida e punida com a morte.
O sentimento contra a bruxaria também era bastante incisivo, pois não era possível desculpar um pacto com o diabo e envenenar alguém por meio de magia negra: matar uma bruxa era um crime passível de perdão, ser uma bruxa não. As temidas bruxas seriam, na verdade, simples mulheres camponesas, que por viverem em intenso contato com a natureza, eram conhecedoras das ervas medicinais, que podiam tanto curar como também matar. Conheciam as ervas abortivas e contraceptivas, o que as permitia exercerem livremente sua sexualidade, fato que por si só já era considerado crime e pecado. Possuíam uma cultura pré-cristã, e a crença em deusas e deuses pagãos, sendo por isso, identificadas como hereges pelas autoridades eclesiásticas, os quais eram convencidos de que esses conhecimentos só lhes poderiam ter sido transmitidos pelo Diabo. Geralmente as mulheres mais velhas, mais feias, mais pobres, as mais agressivas e pertencentes às comunidades aldeãs sofriam com essa repressão.
Contudo, nem todas as pessoas acusadas de feitiçaria eram mulheres: os homens representam em média 20% dos acusados e nem todos devem o seu triste destino apenas a pouca sorte de se terem casado com reconhecidas feiticeiras. Por outro lado, nem todas as feiticeiras eram velhas, viúvas ou pobres. Mesmo se as feiticeiras viúvas são proporcionalmente mais numerosas do que o número das viúvas na população, a maior parte das feiticeiras eram mulheres casadas ou núbeis e a elevada condição social de algumas delas não lhes poupou a acusação ou a condenação.



Conclusão

O levantamento feito para a execução dessa pesquisa, a qual teve como objetivo apresentar as mulheres nas cartas de remissão na França dos séculos XVI e XVII, foi de extrema relevância não só para a compreensão da situação feminina nesse período, como também para o entendimento da conjuntura francesa, através de abordagens plurais, ou seja, contextualizando aspectos econômicos, políticos, e sociais e, sobretudo, culturais.
Na análise dos escritos de remissão, importantes questões foram verificadas, desde uma linguagem apelativa e aspectos de ficcionais, assinalados por Zemon Davi, como toda a burocracia por qual passava o pedido de remissão, aspecto esse intrinsecamente relacionado com a situação política e econômica da França nesse período. O momento de discussão sobre as estratégias diferentes utilizadas nas cartas escritas por homens e mulheres, também revelam a preocupação para com a pluralidade da análise histórica presente no contexto dessa pesquisa, visto ser da relação de ambos, que os perfis de gêneros são definidos.
Todas essas discussões apontam para o fazer histórico produzido atualmente, onde a história cultural fez com que a dimensão simbólica e suas interpretações passassem a constituir o terreno comum, multiplicando assim os métodos e os objetos investigados. Como observa o historiador Marc Bloch[19], o pesquisador necessita de um prévio conhecimento de várias outras ciências ou disciplinas as quais forneceriam os subsídios para a análise de cunho histórico[20]. Nesse contexto, ciências como a antropologia, vão possibilitar a consolidação de um conceito de cultura mais amplo, e a invisibilidade feminina nas fontes passam a ser questionadas, provocando assim descortinamentos de preconceitos culturalmente impostos, enfatizando a contribuição e participação feminina no processo histórico.
Essas ponderações ratificam o objetivo traçado nessa pesquisa, alicerçada em diversas diretrizes de estudo, como já foi discutido anteriormente, compreendendo o ser feminino nos tempos modernos, inserido no contexto da sociedade da época, onde as rupturas de comportamentos eram normalmente esperadas, visto a condição de exclusão que lhes eram atribuídas.



NOTAS:
[1] Filósofo francês, formado na Sorbonne, cujo principal eixo de pensamento está ligado ao estruturalismo. Também tem estudos que o relacionam com a lingüística, a psicanálise, a hermenêutica.
[2] Filósofo nascido na França, formado na Universidade de Paris, influenciado por Ferdinand de Saussure, fez parte da escola estruturalista. Também foi escritor, semiótico, crítico literário e sociólogo.
[3] Historiador francês especialista em história social e religiosa da França nos séculos XVI, XVII e XVIII.
[4] Guerra civil ocorrida na França entre 1648 e 1653, ocorrida no contexto de uma depressão econômica, tinha por objetivos principais a limitação do poder real e consolidar a discussão dos abusos.
[5] Palavras-chave: crimes; mulheres; dívidas...
[6] Crítico, ensaísta, tradutor, filólogo e lexicógrafo, membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Brasileira de Filologia, da Academia de Ciências de Lisboa e da Hispanic Society of América.
[7] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI: o minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 596.
[8] A Instituição das cartas de remissões não era exclusividade da França, existia também em outros locais, na Inglaterra, como um exemplo. Porém, a base de dados dessa pesquisa está dirigida para a França e devido ao objeto e ao objetivo da mesma as passagens estudadas serão relacionadas apenas aos casos franceses.
[9] DAVIS, Natalie Zemon. Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[10] Obra citada, p. 11.
[11] Obra citada: p. 17.
[12] Obra citada: p. 17.
[13] Obra citada: p. 21.
[14] Historiador inglês, nascido em 15 de janeiro de 1914. Graduado pela Universidade de Oxford, foi professor cátedra de História Moderna na mesma universidade.
[15] TREVOR-ROPER, H. R. “A crise geral do século XVII” IN: Do feudalismo ao capitalismo: uma discussão histórica. Theo Santiago (org.). São Paulo: Contexto, 1988.
[16] Ver apêndice um.
[17] Ver apêndice dois.
[18] DAVIS, Natalie Zemon. Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.127.
[19] Historiador francês da tradição de Annales, o qual iniciou o processo de ampliação dos horizontes a serem estudados pela história. Um homem extremamente ligado às questões de seu tempo, tanto que foi morto pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, tendo participado também da primeira.
[20] BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 81.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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