terça-feira, 24 de junho de 2008

O Pântano e o Riacho - uma resenha

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROBLEMAS DA HISTÓRIA DE PERNAMBUCO
SEVERINO VICENTE DA SILVA









O Pântano e o Riacho





Aluna: Wanessa Teles






Recife, 20 de março de 2008.


Introdução

O presente trabalho se propõe a fazer uma discussão acerca do livro O Pântano e o Riacho do historiador Raimundo Arrais. Este livro foi fruto da tese de doutorado de tal estudioso, cuja personagem principal é a própria cidade do Recife.
A partir do recorte histórico que vai de 1840 a 1890 Arrais traça a trajetória da cidade que de burgo triste alcançará o posto de capital da província pernambucana em detrimento de Olinda, já no século XVII.
O período histórico enfocado, segundo o autor do livro, foi escolhido em virtude dele ser inaugurador do progresso, desencadeado na Europa e transplantado para a cidade, que não ficará imune às mudanças que serão implementadas pelas elites, tencionando projetá-la a condição de cidade “civilizada”, entretanto veremos no decorrer da discussão sobre a obra que o progresso irá acentuar muitas contradições de uma sociedade calcada, ainda, no trabalho escravo, e que embora a elite recifense almejasse dar uma ar de “civilidade” ao Recife cada segmento social se apropriará do espaço público de formas distintas.

















Tomando como referencial histórico o século XIX, mais precisamente, os anos de 1840 a 1890, Raimundo Arrais resgata a História da cidade do Recife, cujo objeto de exame é a própria capital da província pernambucana. Utilizando-se de uma perspectiva histórico-social do urbano, o historiador supracitado reconstrói a História da cidade a partir das transformações urbanas implementadas pelas elites recifenses, que imbuídas por valores transplantados dos grandes centros urbanos europeus, timoneadas pelo fulgor do progresso, sendo este inaugurador da modernidade, irá imprimir na cidade um caráter pedagógico, dando-lhe um aspecto de “civilidade” que será concretizado na transfiguração de: Práticas, comportamentos, valores... A cidade aqui é palco das mudanças tanto de ordem material como também simbólica, carregando em sua “alma” a subjetividade das representações humanas.
Ao discorrer sobre a historiografia pernambucana Raimundo Arrais traz à tona uma discussão acerca de uma lacuna no que concerne ao estudo da História do Recife do século XIX. Alguns historiadores que estudaram tal período não atentaram para os fenômenos da produção material e simbólica da cidade, esta na concepção do autor durante muito tempo foi relegada em detrimento de eventos políticos, econômicos... Que movimentaram a História do Recife e de Pernambuco, observa-se, pois, um apego às tradições por parte dos intelectuais no que tange a reprodução do imaginário, do tradicionalismo e do status quo, perpetuando as tradições no pensamento da historiografia pernambucana.
Além desse desinteresse por parte de alguns historiadores de fixarem a cidade como objeto de problematização historiográfica, concretizado na escassez de estudos, a cidade quando vista por alguns escritores do século XX, mais especificamente, quando da intervenção urbanística implementada durante a vigência do Estado Novo. Este fato fará com que os mesmos remontem ao passado do Recife de forma nostálgica e melancólica, fixando seus olhares nas questões pitorescas da cidade, algumas fornecidas pelos diários de viajantes europeus que estiveram na capital no início do século XIX. Um exemplo fornecido por Arrais é Estevão Pinto, que embora tenha sido pioneiro na reconstituição do passado histórico da cidade, este irá absorver por demais os relatos de tais viajantes, sendo seus escritos desprovidos de um senso crítico, isto é, problematizador.

Vê-se, portanto, na obra O Pântano e o Riacho, uma inovação no diz respeito aos estudos acerca da História do Recife e um incentivo aos que futuramente quiserem seguir por esses meandros historiográficos, além do mais, essa produção acadêmica veio acrescentar ao preencher essa vacância nos estudos da História de nossa cidade.
A seguir, é relevante ressaltar a contribuição que os flamengos deram a cidade do Recife, visto que as intervenções urbanísticas implementadas pelos holandeses irão fomentar as atividades econômicas com as construções de pontes, propiciando uma interação entre a cidade e seus arrabaldes, dando uma maior dinamicidade a capital da província. Um outro aspecto interessante abordado pelo autor é no que concerne à conquista de territórios, através dos aterramentos, que apesar da historiografia dar ênfase a ampliação do espaço pelos flamengos, Raimundo Arrais nos fornece informações acerca da atuação da irmandade do santíssimo sacramento da Boa Vista, que embora fosse impelida a fazê-lo por questões relacionadas ao culto divino, estas não excluem o desejo de ocupar solos abertos a expansão urbana. Além da atuação do clero também houve a participação de particulares no aumento da área habitável. Essa observação feita pelo autor descentralizou um pouco o foco sobre a contribuição flamenga, mormente no que se refere à maximização do espaço da planície recifense sobre as áreas alagadiças, ampliando a visão do leitor ao trazer informações no que tange à participação de alguns setores da sociedade na conquista do solo da cidade.

Com a transformação do Recife em vila em detrimento de Olinda, e sendo aquela uma intermediária nos assuntos econômicos, já que era por intermédio de seu porto que se efetuavam as trocas comerciais, dando a cidade um incremento populacional como também prestígio administrativo, além se ser a terceira em importância no império. Uma crítica que faço ao autor é que o mesmo ao trabalhar com dados quantitativos sobre a população do Recife, ele não explica um decréscimo que houve entre os anos de 1872 a 1890, passando a população de 116.671 a 111.556, respectivamente, deixando o leitor sem uma noção exata dos fatores que influenciaram na baixa populacional, pois naquele momento a cidade passava por um momento de transformações, e é legítimo pensar numa atração populacional e não numa retração, no entanto mais adiante ele ao tratar da questão da salubridade pública, evidencia a questão das epidemias que assolaram a província durante o período enfocado.

Dando seqüência à obra há um destaque ao progresso, que era visualizado por intermédio dos empreendimentos urbanos implementados pelas elites recifenses, um fato muito curioso abordado por Arrais é a questão do emprego do ferro nas construções erigidas pela cidade, que era visto como um fator de desenvolvimento, isto é, progresso. Outro âmbito interessante em relação às construções é que as mesmas tentavam imprimir um caráter moralizador com o emprego de mão-de-obra livre nas edificações, além evocar uma espécie de culto ao trabalho, tudo isso com intenção de impressionar aos que aportavam no Recife, principalmente, os viajantes europeus.

A partir do contexto progressista vivenciado pela cidade, é muito interessante quando da abordagem pelo autor da questão no que diz respeito a concepção de teatro como escola dos bons costumes, meio de instrução e formação dos povos, é nessa perspectiva que o teatro de Santa Isabel será concebido, com toda sua pompa em estilo neoclássico, um reflexo da influência européia, mais precisamente italiana, visto que é na Europa que as autoridades irão buscar o exemplo de “civilidade”, forjando no indivíduo urbano um modelo de homem do século do progresso.

Outros sinais de progresso que eram vistos pela cidade eram as praças ajardinadas, espaços de sociabilidade e lazer, que irá excluir uma boa parte da população, visto que o populacho era sempre alvo de críticas nos jornais da cidade, pelo seu mau comportamento, destruindo os espaços naturais construídos pelas autoridades administrativas. É notório que com o advento do progresso fossem acentuados as diferenças no comportamento dos vários segmentos sociais, pois cada um irá se apropriar desses espaços de maneira distinta, vê-se portanto uma certa ingenuidade das elites recifenses em querer adaptar a realidade européia à realidade local, visto que por mais que tentassem dar ares civilizados a cidade por meio de suntuosas construções o cotidiano era,ainda, de uma sociedade baseada no trabalho escravo e com profundas disparidades sócio-econômicas.

Embora as elites Recifenses fossem buscar no continente europeu um referencial no tocante a civilidade, essa tentativa pareceu meio turvada, quando da contratação de uma companhia inglesa responsável pelo saneamento da cidade, que fora no período estudado alvo de inúmeras críticas por parte dos médicos salubristas, inclusive, o médico e vereador Lobo Moscoso responsável pela salubridade pública do Recife, já que além de não resolver os problemas que tanto atormentavam a população no que concerne a questão dos encanamentos por onde deveriam escoar os excrementos, quando solicitado seus serviços a mesma ao fazê-lo escolhia os momentos inadequados para desobstrução dos encanamentos, principalmente no verão, quando a disponibilidade de água era escassa, mostrando a estreiteza do atendimento por parte da companhia inglesa.

Levando em consideração o que fora supracitado, o autor poderia ter explorado essa ausência por parte da Recife Draynage de meios técnicos eficientes relacionados a problemas tão básicos que é a questão do saneamento, pois se as elites iam buscar na Europa, particularmente, na França e em Londres um paradigma de civilização, como é que uma companhia inglesa era tão incompetente ao ponto de não solucionar problemas de ordem pública, a princípio, básicos, embaraçando a vida dos moradores dos sobrados, muitos dos quais não possuíam sequer vasos sanitários, corroborando a fragilidade operacional de tal companhia.

Ao longo da obra, Arrais vai mostrando ao leitor as inúmeras dificuldades das elites, especialmente das autoridades administrativas em dar a cidade requintes de civilização, sendo as contradições acentuadas à medida que o progresso ia se instalando por meio das edificações e seus modelos arquitetônicos suntuosos. Essas contradições ficavam patentes na precariedade dos serviços prestados a população, tais como: Saneamento básico precário, dificuldade para fazer o censo populacional, precariedade no abastecimento de água para a população... Ou seja, serviços imprescindíveis a uma cidade que almejava fazer parte do universo progressista não conseguia resolver problemas básicos para um bom funcionamento da capital da província e até mesmo para o bem estar de sua população.

Além disso, por mais que as autoridades quisessem imprimir na população um comportamento dito civilizado, essa mesma população muitas vezes contrariava essa perspectiva. Um exemplo bem comum era o hábito dos moradores dos sobrados jogarem suas águas utilizadas para o asseio pessoal pelas janelas, batizando os transeuntes que tinham o infortúnio de passarem na hora em que a água era despejada, esse é só um exemplo do ideal de homem civilizado que as elites tentaram forjar, mostrando seu insucesso tendo em vista a permanência de tais práticas.
À medida que o progresso, mesmo que modestamente, ia se instalando pela cidade, um progresso luminoso surgia para registrar de um lado as obras arquitetônicas, os bondes, as maxabombas...Sinais de desenvolvimento como esses eram contrapostos aos hábitos não civilizados da população, a exemplo de indivíduos que urinavam nas ruas, deixando-as com um odor desagradável, além de constranger as damas que passavam nessas horas, essa imagem foi publicada pela América Illustrada, que denunciava a falta de moralidade pública dos moradores da cidade.

Outras cenas captadas pelas câmeras fotográficas eram as que diziam respeito ao cotidiano da população recifense, nas quais o elemento negro está muito presente nas representações das imagens. É muito comum negros carregando damas que passeavam em suas cadeirinhas de arruar, negros despejando os tigres com excrementos de seus senhores no mar, negros carregadores de água, negras vendedoras de doces... Todas essas cenas foram registradas por H. Lewis em 1848. Outros registros mostravam os hábitos avessos à questão da salubridade pública, tais como: Animais sendo lavados nos rios, enquanto mulheres lavavam suas roupas, cozinhavam, tomavam banho e em outro plano da mesma imagem um casal contemplando construções que atestavam o progresso vivenciado pela cidade.
Por conseguinte, no final do livro o autor não se propôs ir mais além de comentários simplórios acerca da introdução do elemento fotográfico, além de uma análise pouco aprofundada das fotografias, deixando de explorar com mais afinco as contradições registradas pelo recurso ótico entre as mudanças acarretadas pelo progresso e os hábitos da população, inclusive, o cotidiano escravo retratado em muitas das imagens, que insistia em permanecer.

Bibliografia:

ARRAIS, Raimundo. O Pântano e o Riacho: A formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004.

Um comentário:

Willian Pinheiro Galvão disse...

Recife, um "burgo"? Há controvérsia minha cara...